Frio e gripe ajudaram ao caos nas urgências, mas faltou planeamento

Cinco especialistas em Saúde analisam caos nos hospitais e propõem soluções. Depois de terem sido abertos sete inquéritos a mortes nas urgências, ministro Paulo Macedo vai esta semana ao Parlamento.

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Longas horas de espera nas urgências e falta de camas nos hospitais para internar os doentes são duas das imagens do SNS desde Dezembro Maria João Gala
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Pedro Pita Barros, economista de saúde e professor na Nova School of Business and Economics Enric Vives-Rubio
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Campos Fernandes, médico e professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova Maria João Gala
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Marta Temido, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares Pedro Granadeiro/nFactos
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Germano Couto, bastonário da Ordem dos Enfermeiros Nuno Ferreira Santos
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Miguel Guimarães, presidente do Conselho Regional Norte da Ordem dos Médicos Pedro Granadeiro/nFactos

Longas horas de espera nas urgências e falta de camas nos hospitais para internar os doentes são duas das imagens que, desde Dezembro, têm marcado o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na mesma semana em que o ministro da Saúde vai ao Parlamento para explicar o que poderá ter falhado e o que está a tutela a fazer para impedir que os problemas se repitam, o PÚBLICO ouviu cinco especialistas sobre o caos instalado nos hospitais públicos, com o objectivo de perceber se a situação pode, de facto, ser atribuída apenas a uma conjugação do frio com a circulação do vírus da gripe e que soluções propõem para as dificuldades.

A presença do ministro na quarta-feira na comissão de saúde surge na sequência de um agendamento potestativo do PCP, depois de terem sido abertos sete inquéritos a mortes nas urgências por possíveis tempos de espera acima do recomendado. Três delas estão a ser investigadas pelo Ministério Público. Os últimos dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge indicam que o país já soma mais de 2500 mortes acima do esperado para esta época do ano.

Há um ponto em que todos - o médico e gestor Adalberto Campos Fernandes, o economista da saúde Pedro Pita Barros, a administradora hospitalar Marta Temido, o presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos Miguel Guimarães e o bastonário da Ordem dos Enfermeiros Germano Couto -  apontam falhas comuns: os centros de saúde não estão a dar resposta e a travar as idas às urgências e alguns hospitais têm falhado na adaptação a picos de procura. Em parte, atribuem os problemas às políticas de saúde, que levaram ao desinvestimento nos recursos humanos e que acentuaram os efeitos da crise.

PÚBLICO - O frio e a gripe justificam aquilo a que se assistiu nas últimas semanas nas urgências e hospitais?
Adalberto Campos Fernandes (ACF) – Justificam, em parte, na medida em que contribuem para um aumento significativo da procura de cuidados de saúde. Uma questão diferente é saber se a resposta se encontrava organizada de modo a responder a uma circunstância que era previsível e que deveria ter sido acautelada, através de um planeamento atempado. Pelo que temos observado, foram muitas as fragilidades que vieram ao de cima num sistema já de si muito enfraquecido pelo efeito das medidas a que foi submetido nos últimos anos.

Pedro Pita Barros (PPB) – O frio e a gripe justificam um aumento de afluência ao SNS. Como a vaga de frio foi prevista, e o ciclo da gripe é estudado, o acréscimo de afluência deveria ter sido previsto e antecipadas as respostas a essa maior afluência de pessoas, e sobretudo teria feito sentido ter respostas que não necessitassem de recurso às urgências hospitalares. Se tivesse sido evitada a sobrecarga sobre as urgências hospitalares, poderiam ter-se evitado, eventualmente, algumas das situações mais dramáticas.

Marta Temido (MT) – O frio e a gripe poderão ter sido factores precipitantes mas as causas reais são mais profundas e complexas. As questões da fragilidade de resposta dos cuidados de saúde primários e das linhas de atendimento telefónico, bem como as questões da insuficiência dos cuidados continuados e das estruturas sociais, são problemas por resolver há demasiado tempo.

Miguel Guimarães (MG) – Não justificam, porque o frio e a gripe são esperados exactamente nestes meses do ano. As autoridades deveriam ter delineado um planeamento que permitisse reforçar os serviços, o que não aconteceu  atempadamente.

Germano Couto (GC) - Em parte sim, pois é um momento do ano em que a população portuguesa não está preparada para lidar com o frio, quer do ponto de vista das condições habitacionais, quer do ponto de vista da prevenção do contágio. Para o cidadão que se sente doente e não encontra outro recurso aberto 24 horas  por dia, a urgência é a melhor resposta, principalmente se tiver de trabalhar de dia.

Como teria sido possível evitar este caos?
ACF – O padrão de procura de cuidados de saúde, neste período do ano e neste contexto climatérico, é previsível quer pela análise histórica quer pela avaliação, em tempo real, do contexto epidemiológico. Não deveria haver lugar a grandes surpresas. O que aconteceu foi que a natureza dos doentes e a severidade da sua condição clínica e social tornou muito mais exigente a resposta. Ora a conjugação de restrições na dimensão e na qualidade das equipas com a dificuldade acrescida de internamento por acréscimos da demora média e redução do número absoluto de camas conduziram a uma situação de ruptura na capacidade de resposta.

PPB – Com resposta atempada das unidades de saúde, organizando-se para responder a essa maior afluência. Essa resposta passa igualmente pelos cuidados de saúde primários e pela Linha Saúde24 que, a meu ver, poderiam ter um papel de primeira linha.

MT – Não subestimando os alertas dos profissionais de saúde e dos investigadores desta área. E tomando atempadamente algumas das medidas que agora são anunciadas. Não serve de consolo saber que outros países, como o Reino Unido, estão a enfrentar problemas semelhantes.

MG – Era possível evitar este caos. O caos deve-se ao forte desinvestimento verificado nos últimos três anos. Cortou-se quase 1,5 mil milhões de euros [na saúde], mais do dobro do que a troika propôs. Os orçamentos rectificativos serviram praticamente apenas para saldar dívidas aos laboratórios. É preciso reforçar o orçamento dos hospitais, contratar médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e técnicos através de concursos e não de empresas de prestação de serviços. É fundamental garantir que as equipas das urgências têm o número mínimo de profissionais previsto na lei. É necessário também um estudo sobre as mortes nos serviços de urgência. Não é aceitável que doentes com pulseira laranja (muito urgente) esperem duas horas e com pulseira amarela (urgente) aguardem longas horas. Os cuidados de saúde primários têm que ser postos a funcionar como funcionavam há alguns anos, por exemplo, reabrindo os SAP (Serviços de Atendimento Permanente). Os centros de saúde têm que estar abertos até mais tarde, pelo menos até à meia-noite e é preciso dotá-los de equipamentos para exames mínimos, como hemogramas e raios X. Devia ainda haver uma campanha imaginativa junto da população, como está a acontecer neste momento no Reino Unido, de forma a que as pessoas percebam que é mais útil recorrer aos cuidados de saúde primários. Há ainda a questão das camas de internamento, que foram praticamente todas encerradas nos hospitais de proximidade, e é preciso apostar nas camas de cuidados continuados. Os últimos dados da OCDE indicam que Portugal tem apenas 3,4 camas por mil habitantes. A Alemanha, por exemplo, tem 8,3.

GC- Esta situação era expectável e é recorrente anualmente. A Ordem dos Enfermeiros desde Agosto que tinha alertado que os serviços entrariam em ruptura assim que se iniciasse o período de gripe, aviso que não foi ouvido. É importantíssimo que os serviços de urgência e de internamento estejam dotados de estruturas e recursos humanos adequados que permitam: 1.º ter espaço suficiente para acomodar a procura; 2.º ter fluxos nas unidades de saúde que agilizem o atendimento; 3.º garantir que existem enfermeiros suficientes para manter uma vigilância constante dos doentes.

Caso se venha a provar a ligação entre as mortes nas urgências e o elevado tempo de espera, quem deve ser responsabilizado?
ACF – Creio que não será esta a ocasião para julgamentos precipitados. O importante, neste momento, será dotar o sistema da necessária flexibilidade para garantir uma rápida normalização da resposta assistencial. Neste tipo de situações é fundamental que o sentido de responsabilidade prevaleça sobre quaisquer outro tipo de apreciações que deverão feitas num outro tempo.

PPB – Não me cabe a mim pronunciar sobre esse aspecto, se estiver a pensar num sentido legal de responsabilização.

MT – Quanto à responsabilidade jurídica, apenas os tribunais a poderão determinar, face à concreta factualidade de cada caso. Quanto à responsabilidade política, a apurar, ela será, obviamente, de toda a linha hierárquica. O primeiro sinal de uma responsabilização activa poderia passar pela nomeação de uma comissão de inquérito independente a estes casos.

MG – São os conselhos de administração dos hospitais e o ministro da Saúde, que é o responsável moral e político por esta situação.

GC - Essa responsabilidade está apurada há imenso tempo! É política e não reside unicamente no Ministério da Saúde mas também no da Solidariedade Social e nos interesses instalados na saúde e nas respostas sociais. Quando retiramos enfermeiros dos serviços de urgência e dos internamentos, ou quando não os substituímos, é impossível vigiar adequadamente 10, 20 ou 30 doentes críticos. Estes rácios são criminosos! Da mesma forma, quando temos lares em que os enfermeiros são tão poucos que apenas dão medicação e “fazem pensos”, as pessoas ficam desidratadas, desnutridas e mais propensas a problemas infecciosos, insuficiências renais, ou descompensação de doenças crónicas. O problema é que temos uma legislação que se preocupa mais em que o lar tenha elevador e muitos quartos do que profissionais competentes em número adequado. O legislador esteve a regular para a construção civil e não para as pessoas.

É possível resolver os problemas nas urgências com medidas que ainda tenham efeito neste Inverno?
ACF – Será possível se forem introduzidas as medidas indispensáveis, de curto prazo, que passam pelo reforço da resposta de proximidade ao nível dos cuidados de saúde primários, mas também pelo rápido ajustamento na qualidade da resposta hospitalar.

PPB – Certamente. As respostas têm que ser dadas dentro da actual estrutura do SNS. Talvez seja bom verificar o que se passou nos hospitais que não tiveram as situações caóticas, pois o frio e a gripe são nacionais, não escolhem esta ou aquela área de influência de um pequeno número de hospitais.

MT – Há medidas de redução do dano que, seguramente, estão a ser tomadas aos vários níveis de intervenção. Mas tenho pouca fé em soluções big bang. E as soluções incrementais demoram tempo. Lembra a história da cigarra e da formiga… Ainda assim, a lenta devolução de autonomia de gestão aos hospitais que, por pressão das circunstâncias, começa a verificar-se, poderá permitir que alguns problemas não assumam certas proporções.

MG – Aumentar  o número de camas é relativamente simples. Já os concursos [para contratar profissionais] chegam a demorar um ano, mas o ministro pode e deve agilizar os prazos.

GC – A isenção das taxas moderadoras nos cuidados de saúde primários para quem recorre em situações de doença aguda, o reforço imediato das equipas de urgência e a educação para a saúde da população pelos canais públicos de televisão e rádio, tal como alargamento dos horários nas estruturas de cuidados de saúde primários.

O despacho do Ministério da Saúde enumera 28 pontos para solucionar o problema. Quais acha verdadeiramente importantes e exequíveis?
ACF – Como todas as medidas tomadas em situação de recurso corre o risco de ser pouco eficaz na resposta atempada aos problemas. A correcção dos desequilíbrios que foram gerados pelas medidas de política ao longo dos últimos quatro anos não se resolve, em poucas semanas, pela simples publicação de um despacho.

PPB – Exequíveis são provavelmente todos. Relevante é saber se produzirão efeitos visíveis. Aparentemente, o despacho coloca sobretudo nas Administrações Regionais de Saúde (ARS) a exigência de encontrar a solução. Como me parece que o problema é sobretudo de gestão em cada unidade, será necessário que as ARS consigam obter resposta da gestão hospitalar, tendo ainda um papel de coordenação entre hospitais e cuidados de saúde primários.

MT – Os aspectos relacionados com a organização hospitalar são aqueles que melhor avalio e causaram-me alguma perplexidade. Terá de ser o secretário de Estado adjunto da Saúde a dar orientações sobre a compra de macas e as ARS a alertar os hospitais para acautelar as escalas dos serviços de urgência em caso de tolerâncias de ponto? Parece-me que às administrações deveria competir a gestão institucional e ao ministério a definição das políticas de saúde. Como aspectos práticos do despacho saliento, na área hospitalar, “a possibilidade de os hospitais contratarem em regime de tarefa ou de avença onde for preciso” e, na área dos cuidados de saúde primários, o “alargamento de horários onde for desejável até às 22 horas”; apesar da difícil exequibilidade ficam abertas as possibilidades.

MG – Há medidas que fazem sentido, como a da retriagem, quando há atrasos, tal como a da colaboração mais estreita entre cuidados primários e hospitalares e a que se refere à agilização e finalização dos concursos e à aceleração da colocação dos médicos. Depois, há, no despacho, alguns pontos assépticos e outros que são completamente disparatados. Por exemplo, quando se fala em ter camas supletivas no sector privado e nas unidades militares, está-se a descrever um cenário de catástrofe. Nós falamos em cenário de caos, mas eles aludem a um autêntico cenário de catástrofe…

GC - Reforço a importância de dotar as urgências e os serviços de um número de profissionais adequados. Infelizmente o Ministério está muito preocupado com os médicos e esqueceu no seu despacho os restantes profissionais. Nos serviços de urgência quem vigia os doentes enquanto aguardam a consulta médica são os enfermeiros. Quem inicia a primeira intervenção e alerta para casos emergentes são os enfermeiros. Quando o número de enfermeiros é insuficiente torna-se impossível dar resposta em tempo útil e é fácil surgirem relatos de doentes encontrados já cadáver. [Também] não chega comprar macas, aliás, nem resolve o problema. Não vale a pena esconder as macas no meio dos serviços de internamento.

Que medidas sugere para, a curto e médio prazo, assegurar o bom funcionamento das urgências e hospitais?
ACF – Creio que no actual contexto do ciclo político pouco haverá a esperar. O caminho escolhido foi errado e partiu do princípio de que o sistema comportaria, por igual, uma grande elasticidade perante a acumulação de sucessivos cortes transversais. Acresce um evidente desinvestimento no capital humano.

PPB – No que se refere às urgências, ter um adequado planeamento de picos de procura será o essencial. Em alturas onde se espere maior afluência o papel da linha Saúde24 deveria ser relembrado junto da população (e ter a capacidade de assegurar a resposta). As necessidades de recursos humanos e a disponibilidade de instalações físicas deverão ser asseguradas por cada gestão local. Prevenir em vez de reagir é aqui o aspecto central.

MT – Não conheço respostas de curto prazo. Em 2012, a Comissão para a Reavaliação da Rede Nacional de Emergência e Urgência efectuou um conjunto de recomendações sobre o assunto. Envolviam o reconhecimento de que há situações agudas que não são urgências e cuja resolução tem de ser assumida pelos cuidados primários, a exigência de normalização da formação dos recursos humanos destes serviços, o estímulo à utilização das linhas de orientação de doentes. A sugestão é muito simples – trabalhar na implementação dessas orientações.

MG – No imediato, é preciso começar a contratar médicos e enfermeiros através de concursos públicos abertos, e iniciar o processo de contratação de médicos reformados.  Para uma situação de excepção, são necessárias medidas de excepção. É preciso igualmente dotar os hospitais das camas de internamento necessárias e aumentar as camas dos cuidados continuados, alargar horários de funcionamento dos SAP ou criar um modelo alternativo. Por fim, é preciso fazer a reforma da rede de urgência e emergência médica.

GC - A curto prazo deve manter-se o alargamento do horário das estruturas dos cuidados de saúde primários e o reforço das equipas. A médio prazo é importante assegurar que os cidadãos vejam no SNS um percurso simples e rápido para dar resposta aos seus problemas. Se eu preciso de realizar um exame de diagnóstico a ida ao serviço de urgência não pode ser mais prático do que o contacto com o meu médico ou enfermeiro de família.   Outra medida importante será a melhoria da estrutura física de muitos serviços de urgência para oferecer condições dignas às pessoas e aos profissionais.  Não menos importante é a melhoria dos cuidados de saúde em muitas instituições residenciais de idosos (lares) que não oferecem a qualidade e segurança necessárias.

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