O universo pode esperar, é a hora do diário íntimo de Björk

Nos últimos anos a islandesa concentrou-se no mundo exterior. No novo álbum, Vulnicura vira-se para si própria.

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Ainda há semanas quando entrevistávamos Noah Lennox (Panda Bear) este nos dizia que só no final do processo de feitura de cada disco, vai tomando consciência sobre o que o motivara e o que está por detrás de determinada criação.

A semana passada, em entrevista à publicação Pitchfork, a islandesa Björk dizia qualquer coisa de idêntico, expondo que só no final do processo foi tendo percepção que acabara de gerar um disco confessional, como se as canções de Vulnicura, assim se chama o álbum, funcionassem como uma espécie de diário.

Em 2007, numa outra entrevista, desta vez ao veterano Robert Wyatt, velho conhecido e colaborador de Björk, este dizia-nos que existem momentos em que existe a pulsão de criar discos à volta do estado do mundo e outros em que só consegue tratar dos frágeis mecanismos que suportam as relações humanas. “Há momentos em que não conseguimos, ou não sabemos, como nos relacionar com o resto do mundo”, dizia-nos. “Por exemplo, quando perdemos algo que sempre considerámos como fazendo parte da nossa vida. Quando nos separamos de alguém que fez parte da nossa vida, por exemplo, há uma mudança que não pode ser colmatada. Temos que nos adaptar à perda e nesses momentos o resto do mundo não conta.”

Dir-se-ia que Björk terá passado por uma situação semelhante. Depois de nos últimos álbuns se ter centrado nas relações entre natureza e tecnologia, eis que se vira para si própria, interrogando as estruturas que sustentam as relações humanas, sejam elas familiares ou amorosas, no contexto da dissolução da sua ligação de cerca de dez anos com o artista plástico Matthew Barney, da qual viria a resultar uma filha, Isadora. É uma obra bem mais pessoal do que os três anteriores registos, que funcionavam como projectos globais. Não significa que Vulnicura não o venha a ser, mas é mais um álbum clássico e menos um ponto de partida, como Biophilia (2011), no sentido de activar outros desenvolvimentos artísticos.  

As letras reflectem esse maior recolhimento, parecendo reflectir estados de alma relacionais. Não são interpelações acerca da ciência, da natureza ou da tecnologia, por exemplo.

Nesse sentido é uma obra que se aproxima mais de Vespertine (2001), disco doméstico, de poesia digital, de partilha de privacidade, onde os organismos electrónicos acabavam por espelhar essa vontade de introspecção. A maior parte das canções do novo álbum respiram dessa intimidade e candura.

Na referida entrevista à Pitchfork quando lhe perguntam quais as cantoras-compositoras confessionais de que mais gosta, responde, sem novidade, os nomes de Amália Rodrigues e da paquistanesa Abida Parveen, acrescentando depois também Chaka Khan e Joni Mitchell. O facto de não perceber as letras das duas primeiras é sublinhado exactamente para destacar que o que lhe interessa acima de tudo é a força expressiva das interpretações. Como acontece, aliás, com ela própria.

O que se mantém também no novo álbum é uma certa ideia romântica do trabalho em grupo. Diz que lhe é impossível trabalhar só. Assegura que essa costela lhe vem do pai, antigo líder sindical, nela existindo espaço para a reflexão pessoal e para a troca. Não espanta que tenha dito que ter encontrado Alejandro Ghersi, nascido na Venezuela, de 24 anos, mais conhecido por Arca, tenha sido determinante. Foi o jovem músico e produtor, agora a residir em Londres, que a procurou.

Numa conversa com a revista francesa Les Inrockuptibles disse que se encontraram há ano e meio, na Islândia, ainda antes de ela ter ouvido o seu trabalho com FKA Twigs, Kanye West ou Kelela e muito menos o seu álbum a solo do ano passado, Xen. Ela afirma que, apesar da grande diferença de idades, são como almas gémeas, emocionalmente e musicalmente, e que ele conhece bem melhor o seu trabalho do que ela própria. A verdade é que estava num certo impasse criativo e ele ajudou-a. Num par de meses, na Islândia, completaram o álbum.

Há dias, Arca, veio a público dizer que foi depois de trabalhar com ela que ganhou coragem para criar o seu próprio álbum, sem qualquer tipo de compromisso, a não ser com a sua arte.

Existem alguns pontos de contacto com o trabalho que ele fez com FKA Twigs – até no design visual do disco – mas muito menos do que seria de esperar, com o envolvimento sonoro restringido ao mínimo, orquestrações e motivos digitais vogando no espaço, rodeando a excelente performance vocal. 

É um álbum de detalhes sonoros e líricos, com os arranjos dramáticos a atribuírem ao todo uma qualidade emocional. Em canções como Family, por entre batidas marciais, ouvimo-la cantar “is there a place where i can pay respects for the death of my family?”, terminando com “love will keep us safe from death”, numa das muitas canções que parecem resultar num misto de interrogação, vulnerabilidade e superação da dor. 

Quando se soube que Arca e o inglês Bobby Krlic, ou seja The Haxan Cloak (este último apenas na mistura final do disco) tinham estado a trabalhar com a islandesa, antecipámos que poderia ser um álbum de canções retorcidas, viscosas e metalizadas, possuídas por grande sentido de experimentação. 

Não está longe disso. Mas mesmo assim ficámos surpresos, até porque a presença de Arca é mais subtil do que se poderia supor (vale a pena ouvir a excelente banda-sonora para um desfile de moda, Sheep, que lançou a semana passada na Internet) e essencialmente porque o todo resulta numa obra mais inteligível e transparente do que os anteriores álbuns Biophilia (2011), Volta (2006) ou Medulla (2004). 

A veia exploratória contínua presente, mas ao serviço de processos de composição bem mais tradicionais. Ao contrário da larga maioria dos músicos oriundos da cultura pop, a islandesa foi aprofundado e radicalizando o seu trabalho, para desagrado de alguns dos admiradores da década de 1990 que se reviam na pop mais convencional de álbuns como Debut (1993), Post (1995) ou Homogeneic (1997).

A Björk de 2015 é alguém que tem um canto só seu. Percebe-se ouvindo algumas das baladas mais afectuosas deste disco – como a canção inicial Stone milket ou Atom dance, que conta com a prestação vocal de Antony – que lhe seria relativamente fácil compor temas de maior apelo popular, mas nitidamente isso já não a satisfaz hoje em dia.

As circunstâncias da edição do novo álbum, dois meses antes do previsto, são conhecidas. Há duas semanas ficámos a saber que pretendia lançar o álbum em Março para coincidir com os seus 50 anos de idade e com a retrospectiva de que irá ser alvo no Museu de Arte Contemporânea de Nova Iorque (MoMA). O facto de o disco ter ido parar ilegalmente à Internet fê-la mudar de ideias e aí está o nono álbum de originais, para já apenas em edição digital – o CD ou o vinil só em Março.

Nas primeiras declarações acerca do álbum, efectuadas através das redes sociais, não existiu nenhum comentário ao sucedido.

Faz sentido. Ela deseja que a forma como o álbum foi lançado não acabe por gerar mais interesse do que a obra em si, como tem sido norma nos últimos anos com muitos músicos de nomeada. Não tem que se preocupar, porque Vulnicura é magnífico, feito de ambientes serenos, quase solenes, e uma arquitectura ambiental onde as orquestrações sobressaem por entre climas digitais metalizados.

É obra revigorante, de climas futuristas, mas profundamente humana, sem concessões ao imediatismo. Magnífico. 

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