Trancas à porta?

Dizia Irving Kristol que "um conservador é um liberal que foi assaltado" (ao que Tom Wolfe respondia que "um liberal é um conservador que foi preso”).

Dediquemo-nos à primeira parte. Claro que as frases acima se aplicam principalmente à nomenclatura americana, onde "liberal" e "conservador" quer dizer, grosso modo, "de esquerda" e "de direita". Mas, para o caso que nos traz a crónica, podemos usar liberal no sentido europeu, como defensor da primazia dos mercados desregulados na economia.

Temos agora em Portugal um liberal que deixou de ser liberal. Trata-se de Carlos Abreu Amorim, deputado do PSD, e antes um dos liberais mais ativos na blogosfera e na opinião política lusa. Disse ele em entrevista a este jornal: "Se nós olharmos para o que aconteceu em 2007 nos EUA e aqui, houve uma margem de liberdade dada aos agentes económicos, sobretudo financeiros, que pura e simplesmente eles não mereciam. Não estavam à sua altura. Por isso vou fazer-vos uma revelação: eu já não sou liberal".

Com tal revelação em mente, tentei ver o que teriam os ex-correligionários de Abreu Amorim a dizer sobre o diagnóstico dele. As reações eram todas ao estilo de "A Queda de um Anjo" — o idealista ingénuo que chegou ao parlamento e se deixou conspurcar pela baixa política, etc. Mas sobre o conteúdo, nada. Ora, o problema é que nos últimos anos, com a crise financeira e a rédea solta que foi dada à banca para as suas depredações, houve mesmo um assalto — e as vítimas fomos todos nós. Nos quadrantes liberais, porém, não se reconhece o que aconteceu: puro e simples estado de negação.

Isto seria apenas divertido se as mesmas ideias e muitas das mesmas pessoas não se preparassem ainda assim para voltar a fazer estragos. Podem lamentar o que se passou nos últimos anos, verberar a irresponsabilidade dos banqueiros ou a pusilanimidade dos políticos, mas não se vê retirarem-se consequências. 

No governo que Abreu Amorim apoia, por exemplo, vemos Bruno Maçães, que é secretário de estado dos assuntos europeus, defender o acordo transatlântico de comércio e investimento (TTIP, na sua sigla inglesa) com a sua possibilidade de contornar os tribunais nacionais através de centros de arbitragem especiais para as multinacionais. Ninguém retira a Bruno Maçães o direito de ser ideologicamente liberal. Mas enquanto governante, ele tem obrigações de velar para que não sejamos assaltados de novo. Ora, o TTIP pode muito bem ser um certo apogeu do tipo de ideologia que nos trouxe até à crise presente, agora firmado à escala de uma área geográfica onde vivem 800 milhões de pessoas. Quando as empresas portuguesas tiverem de competir com outras que beneficiam de salários (ainda) mais baixos e bitolas de proteção ambiental ou regras de segurança alimentar mais relaxadas ou inexistentes, talvez algum ex-defensor da globalização liberal venha a confessar, no futuro, o seu arrependimento. O mais provável é que a grande parte siga como se nada fosse. E há outros exemplos, como Pires de Lima com a PT ou o próprio Passos Coelho com a TAP.

"A casa roubada, trancas à porta" é uma regra empírica melhor do que parece. Significa que ao menos aprendemos. Infelizmente, a regra dos nossos liberais parece continuar a ser "a casa roubada, porta escancarada".

 

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