É a rir que se faz a melhor arbitragem

Filipa Jales foi premiada pela Federação Portuguesa de Rugby como o melhor árbitro do ano, numa escolha sem distinções de género. A primeira mulher a apitar seniores masculinos em Portugal defende, contudo, que o galardão se deveu sobretudo ao seu “papel de Joana D’Arc” a desbravar caminho no feminino.

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João Peleteiro

Fora do relvado, nas imediações, chamam-lhe “tia Jales”, em tom provocatório. Dentro do campo, na dúvida, os atletas das equipas masculinas perguntam-lhe: “Devo tratá-la por ‘Senhor Árbitro’ ou ‘Senhora Árbitra’?”. Ela descomplica: “Trate-me por Filipa”. É por essa postura descontraída que Filipa Wellenkamp Mesquita Mendes Jales vem conquistando um lugar especial na arbitragem do râguebi nacional e internacional. Numa particular combinação de genética lusa, alemã e francesa, a que acresce ainda o tempero de alguns anos de vida no Brasil, foi uma jogadora de topo no campeonato português, tornou-se a primeira mulher a arbitrar jogos nacionais de seniores masculinos e hoje, aos 35 anos, vem somando prestações internacionais em provas prestigiadas.

O râguebi não lhe nasceu no sangue, nem na tradição familiar. Os homens da casa seguiam futebol, torcendo pelo Belenenses, e o desporto entrou-lhe no corpo através da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense, da Cova da Piedade, onde se fez ginasta de alta competição. Um dia, tornou-se é grande de mais. “Tu és muito alta para ginástica”, disseram-lhe. “Podes continuar na modalidade, mas sem competir, porque não cabes nos aparelhos”.
Filipa ficou chateada nos seus 1,78 metros. Limitou-se a alguma ginástica acrobática para manter os músculos exercitados e a neura só desapareceu quando já estava na faculdade, a seguir Engenharia Química na Universidade Nova de Lisboa. “Porque é que não vais para o râguebi”, perguntou-lhe então a prima. “Râguebi? O que é isso?”, ripostou, sem saber que já lhe tinham mudado a vida.

O treinador que a recebeu na sua primeira visita ao campo do Grupo Desportivo dos Pescadores da Costa de Caparica introduziu-a nas placagens, para que soubesse o que a casa gasta, e incentivou-a: “Podes vir contra mim com toda a tua força”. Incrédula, a miúda de 20 anos quis confirmar: “Está a falar a sério?”. Não foi preciso insistir e, à primeira tentativa, o homem ficou estendido no chão. “Eu toda preocupada por tê-lo feito cair e a equipa estava a bater palmas”, recorda Filipa. “Gostei logo daquilo. Foi paixão. Ainda não percebia nada de râguebi e já adorava”.

Numa época em que poucos eram os clubes com secções femininas, a estudante universitária tinha, assim, um ou dois treinos por semana. “Jogávamos como os sub-10”, conta. “No intervalo dos Seniores é que fazíamos um jogo de cinco para cinco, num campo de 14”. Mesmo nesses termos, a evolução foi consistente e, na época 2001-02, Filipa Jales ganhou o primeiro campeonato feminino. Foi novamente campeã pelo clube da Costa da Caparica em 2003-04 e repetiu o feito mais duas vezes com a camisola do Benfica, onde entrou pela mão do desaparecido Carlos Nobre, após a extinção da secção de râguebi no clube dos pescadores. No currículo tem ainda três Taças de Portugal, uma Supertaça e nove internacionalizações.

Até que, um dia, achou que o seu corpo estava cansado e, valendo-se de uma ocasião em que a elegeram como a melhor em campo, decidiu que era tempo da reforma. “No início da época fiz uma entorse que me fez sofrer o ano inteiro e nos jogos de domingo ainda me doíam as costas pelas placagens de sábado”, confessa. “Por isso é que aproveitei aquele prémio. Achei que aquele era o momento certo para a saída”.

Da prova científica ao erro humano
A Engenharia Química também começara a ser posta de parte. Desde criança que Filipa Jales achava graça às experiências científicas e brincava com laboratórios no sótão, mas a faculdade revelou-lhe um lado menos sedutor: “É um trabalho que obriga a ter muita paciência.” “Eu sou muito activa e aquelas horas todas em laboratório — a acompanhar a evolução do processo, a registar as mudanças, a medir temperaturas — não eram para mim”. A atleta ainda esteve ligada à indústria farmacêutica, mas acabou por tornar-se comercial de telecomunicações e, entretanto, descobriu forma de se manter no râguebi.

Tinha então 30 anos e treinar as camadas jovens não era uma opção. Carlos Nobre sugeriu-lhe a arbitragem e, uma semana depois, a ex-jogadora testava-se num treino de convívio nos relvados de Belém. Gostou. Apreciava sobretudo a liberdade proporcionada por essas funções, que lhe permitiam treinar-se no horário que bem entendesse, “sem falhar compromissos com ninguém”. Na época 2008-09 estreou-se oficialmente num jogo de Sub-16 e, “para uma primeira vez, a coisa não correu mal”. Mas continua a garantir que os erros são uma constante da arbitragem, pela inevitabilidade da condição física e humana dos juízes, num país em que a modalidade ainda não recorre a tecnologias. “Consigo olhar para trás e ver a quantidade de disparates que fiz. Mesmo hoje, ao rever os jogos, chamo nomes a mim própria”, confidencia.

A revisão de cada partida é, aliás, uma prática de autoavaliação em que o râguebi “devia servir de exemplo a outras modalidades” e por isso a árbitra considera fundamental o papel dos chamados “observadores”, que detectam o que correu mal em cada prestação dos juízes. O problema é que o actual formato de distribuição dos jogos não permite a revisão de todas as provas. “Fica o recado aos clubes: não marquem os jogos todos à mesma hora”, propõe.

Psicologia, gestão e um termómetro
No contexto dessa falta de recursos humanos, as mulheres são um potencial por explorar. “Não há razão nenhuma para elas não estarem na arbitragem, desde que estejam fisicamente preparadas para o trabalho”, assegura Filipa. Mas eles não correm mais do que elas? É verdade. “Só que isso compensa-se com linhas de corrida pensadas de acordo com o ritmo das equipas em campo e contorna-se com agilidade mental, para se responder a qualquer mudança de táctica com decisões rápidas”.

A questão mais delicada poderá ser a adaptação ao cargo em termos sociais e emocionais. Sociais, porque uma arbitragem empenhada significa que as folgas dos dias úteis são gastas a rever jogos ou leis e que os fins-de-semana “são simplesmente para esquecer”. “Falhei tantos momentos importantes da família que eles já me devem ter excomungado”, admite. Em termos emocionais, por sua vez, a função envolve uma série de subtilezas que podem influenciar o desempenho: “Ser árbitro é ser psicólogo e ser gestor. Mesmo que ele não saiba nenhuma lei, se souber gerir pessoas dentro do campo já tem meio jogo arbitrado”. Isso reflecte-se no uso da intuição ou na capacidade de prevenir nos atletas eventuais perdas de autocontrolo.

Os principais aspectos a medir por esse “termómetro emocional” são, ainda assim, os que se revelam intrínsecos ao sexo das equipas em campo. “É totalmente diferente arbitrar um jogo de homens ou um de mulheres e a diferença fundamental é que elas falam muito mais — estão sempre a falar!”, declara Filipa, entre risos. “Ouve-se tudo o que elas dizem umas às outras durante o jogo e elas também questionam tudo o que os árbitros lhes dizem. Com um homem, usar a sinalética é suficiente e só se fala quando há discordância por parte do capitão; com as mulheres, vejo-me obrigada a parar o jogo para explicar verbalmente a falta e elas querem saber o porquê do porquê do porquê!”.

A ex-campeã reconhece que o bate-boca pode dever-se à familiaridade que mantém com atletas que já foram suas parceiras e adversárias, mas acredita que o que está em causa é mera biologia. “Falar e questionar faz parte da essência feminina”, argumenta. “Mas diga-se de passagem: com elas só se explica uma vez; com eles explica-se hoje, explica-se amanhã outra vez, repete-se no dia seguinte e por aí adiante”.

Mesmo fora do campo, o comportamento de uns e outros difere. As senhoras são mais afectuosas e efusivas, no que a própria árbitra não será excepção. “O momento mais emotivo que tive no râguebi foi quando Portugal ganhou à França no Europe Sevens Grand Prix”, assume Filipa Jales. “Estava a trabalhar no torneio e, quando a selecção ganhou, pus-me aos saltos e fui a correr agarrar-me às jogadoras. Não devia ter feito aquilo, mas foi mais forte do que eu”.

Já os senhores, são mais contidos e “sempre cavalheiros” — na dose possível. Fora do campo, desfilam nus pelo balneário quando a árbitra passa vistoria aos equipamentos e fazem insinuações quando, devido à avaria de uma fechadura, ela fica trancada na zona de banhos com um observador. “É a ver se me atrapalham”, afirma Filipa, divertida com essas memórias. Em campo, por sua vez, “se o árbitro for uma mulher e eles tiverem que praguejar, o palavrão vai sair-lhes na mesma, mas a seguir olham logo para o lado e dizem: ‘Desculpe’”. É por isso que a árbitra que tantas vezes se ri em campo delibera: “Se eu tivesse que aplaudir alguém por esta mudança de mentalidades, era os jogadores. Com as equipas técnicas ainda tive alguns dissabores, mas com os atletas não tenho memória de nenhuma situação desagradável”.

Questões sociais e emocionais à parte, a diferença mais gritante é a que existe entre os procedimentos da arbitragem nacional e os da internacional. “Aqui, o árbitro faz tudo”, explica Filipa. “Lá fora, alguém trata da parte burocrática, que eu nem vejo; alguém faz os briefings com os managers de equipa; alguém lida com tudo o que se passa fora das quatro linhas. A função do árbitro é única e exclusivamente a de se concentrar no jogo”. Libertos de tarefas secundárias, os juízes investem mais tempo na preparação da prova. “E como em Portugal ainda se faz um jogo muito parado, essa preparação fazia-nos falta para ficarmos mais próximos do nível internacional”, justifica.

O estilo mais casual do râguebi português não invalida, contudo, que tenha sido em solo pátrio que Filipa registou os momentos de maior nervosismo. Após anos com receio de arbitrar seniores, tremia “como varas verdes” quando se estreou a esse nível na II Divisão e sentiu quase a mesma ansiedade antes do derby Benfica-Sporting, no ano passado. A solução foi arrefecer o tal termómetro e usar de racionalidade: “Fiz num quadro a lista dos meus medos todos, para ver o que é que estava na minha mão controlar. Nenhum deles dependia de mim”.

Prémio pelas batalhas ganhas
Perante toda esta evolução, a distinção de Melhor Árbitro de 2014 não terá significado tanto para Filipa Jales quanto para o próprio râguebi. "Ninguém sabe bem quais são os critérios de atribuição do prémio, mas devem-mo ter dado por eu já há uns anos ser a Joana D'Arc da modalidade", pondera, com uma gargalhada. "É que se foi por me acharem efectivamente o melhor árbitro, eu não concordo, porque há quem faça um trabalho mais regular e complicado do que o meu. Acho mais que me escolheram pela minha actividade internacional, em que tenho tido algum êxito, e como reconhecimento pelo valor do râguebi feminino em geral".

É por isso que proclama que "o mais difícil já foi feito". Assistiu à sua aceitação como juíza entre homens; viu reconhecido o seu mérito enquanto profissional total, independentemente do género. "Estava farta de ver jogos femininos sempre com o mesmo árbitro ou então sem nenhum", desabafa. "Quando comecei, pensava que me iam desvalorizar por ser mulher, mas, precisamente por isso, até fui um bocadinho protegida, com toda a gente a respeitar os meus timings e a deixar-me avançar step by step, como qualquer pessoa que começa a arbitrar devia poder fazer". Pressões pela fragilidade que poderia estar afecta à sua condição pioneira, nunca as sentiu. Aliás, realça: "Se a postura para com um árbitro de râguebi fosse a mesma que existe para com os de futebol, eu nunca teria seguido a arbitragem".

Dessa estabilidade resultou, assim, uma evolução sólida, confortável. A censura também foi justa: "Sou criticada da mesma forma que criticam um homem e dizê-lo é o melhor elogio que posso fazer a quem vem trabalhando comigo". Resta agora proceder ao reforço das tropas. Filipa gostava de ver mais árbitras no râguebi e insiste que há várias funções desportivas em que, no feminino ou masculino, os ex-atletas seriam úteis ao desenvolvimento da modalidade. "Os clubes souberam aproveitar o boom do Mundial 2007, mas esse já passou e agora há que sedimentar o que temos e tratar do futuro", defende.

É a pensar nisso que a melhor árbitra do ano quer mais formação em râguebi no currículo oficial das escolas, quer um número de praticantes que assegure maior leque de escolha às selecções nacionais, quer mais competitividade em campo, mais infraestruturas de apoio, mais patrocinadores. "Nunca se falou tanto de râguebi como agora ", salienta. "Falta é rentabilizar o interesse das pessoas, porque há muitos adeptos anónimos que seguem o râguebi em casa e é preciso descobrir os nossos próximos jogadores". As mães desses futuros atletas também andarão por aí e, se quiserem ajudar a moldar a próxima era do râguebi português, Filipa Jales deixa-lhes já uma certeza: "Serão bem-vindas. A realidade já demonstrou que somos tratadas de igual para igual – tem é que haver competência e mérito para lá chegar".

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