O Horizonte: Iluminar a "matéria escura"

Patrick Modiano, para muitos o mais importante escritor francês vivo, parece querer ensaiar em O Horizonte uma singular "busca do tempo perdido". Republicamos aqui uma crítica ao romance O Horizonte.

Foto

Rostos, episódios breves, encontros singulares.

Tudo isto começara como que a vir ao de cima na memória de Jean Bosmans. Chegavam de um passado longínquo, do tempo da sua juventude, de há 40 anos atrás. "E, se todas as palavras ficassem suspensas no ar até ao fim dos tempos e bastasse um pouco de silêncio e de atenção para captar os seus ecos?"

E, de facto, assomavam-lhe ao pensamento como se tivessem permanecido em suspenso durante quatro décadas, como se pertencessem a um eterno presente; memórias que lhe provocavam uma espécie de vertigem quando pensava no que poderia ter acontecido e não acontecera. Chegavam vindas daqueles anos em que "a vida é entrecortada de encruzilhadas e se abrem tantas vias aos nossos olhos que a escolha se torna difícil".

E Bosmans começara a apontar num caderno preto, que guardava no bolso do casaco, aquelas recordações fugazes que o assaltavam. Esperava assim encontrar pontos de referência - datas, nomes, locais - que lhe permitissem iluminar isto que ele comparava à "matéria escura" sobre a qual escrevera um artigo para uma revista de astronomia. "Por detrás dos acontecimentos precisos e dos rostos familiares, sentia perfeitamente tudo o que se tornara matéria escura: breves encontros, reuniões falhadas, cartas perdidas, nomes e números de telefone figurando numa antiga agenda e que foram esquecidos, e aqueles e aquelas com quem nos cruzamos sem sequer nos apercebermos."

Patrick Modiano (Boulongne-Billancourt, 1945), para muitos o mais importante escritor francês vivo, parece querer ensaiar em O Horizonte uma singular "busca do tempo perdido". A personagem Jean Bosmans recorda, por vezes minuciosamente, o tempo em que privou com Margaret Le Coz (até ela desaparecer na noite, como ele sempre receara), uma enigmática jovem que o acaso de uma carga policial empurrou literalmente para os seus braços na entrada de uma estação de metro. Margaret sente-se aterrorizada com a ideia de ser perseguida, por razões obscuras, por um antigo pretendente que, aparentemente, reagiu mal à rejeição.

No enigmático passado de Margaret há apenas o seu nascimento em Berlim e o antigo emprego como governanta na Suíça; em Paris, parece trabalhar como tradutora de alemão e dactilógrafa num não menos enigmático escritório chamado "Richelieu Interim", que ela descreve como "uma espécie de empresa de contenciosos". Mas também Jean Bosmans se move por Paris tomado pelo medo de dar de caras com a mãe (que se faz sempre acompanhar de um homem que parece "um padre sem sotaina"); esta, de cada vez que o vê, exige-lhe que lhe dê todo o dinheiro que tem nos bolsos. Devido a este facto, Bosmans já se viu forçado a mudar de endereço.

Mais uma vez, Modiano cria um par de personagens frágeis, pessoas que se movimentam pelo mundo (de novo e sempre, Paris) dando ao leitor a sensação de que é o vento que as leva no meio de uma multidão anódina (na qual receiam perder-se, dissolver-se) ou então sozinhas, vogando pelas ruas à semelhança dos pares dos desenhos de Chagall. Como acontece em alguns dos seus romances anteriores (Dora Bruder ou O Café da Juventude Perdida - ambos publicados pela ASA -, para referir apenas os mais recentes), também em O Horizonte as personagens estão envoltas por um certo ar de ilegitimidade, o que as leva a tentarem refugiar-se umas nas outras, um no outro, no caso. Actuam como se vivessem sempre numa espécie de vida paralela, em que cada acto ou movimento é mais um ponto para a ténue teia que se vai desenhando diante do leitor como se de filigrana se tratasse, de tão frágil e necessitada de cuidados.

Jean Bosmans e Margaret Le Coz são um par em busca de qualquer coisa, não de um passado que parece nunca ter existido, mas de uma identidade perdida algures na cartografia de Paris, etérea e eterna. "Bosmans tinha a certeza de que estavam fora do tempo, longe de tudo". Menos longe da solidão e do desenraizamento que assoma neles como uma partida do destino.

O Horizonte surge como uma espécie de prolongamento na obra de Modiano, uma obra sempre nova e a criar novos laços, e cujo talento subtil já fez aparecer, como notou Pierre Assouline, um neologismo: modianesco.

Sugerir correcção
Comentar