Terra em transe

A estreia dos HHY & The Macumbas é realismo mágico narrado em linguagem dub.

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Os HHY & The Macumbas são uma experiência xamânica, um ritual que escancara as portas para outra realidade — misteriosa, envolvente PAULO PIMENTA

É uma experiência intensa, xamânica, diríamos sem pensar em Carlos Castañeda, antes na ideia de ritual que nos escancara as portas para outra realidade. Ao longo dos últimos anos, fomos ouvindo falar dos HHY & The Macumbas, colectivo do Porto de formação variável (podem ser seis, oito, dez).

Também lhes vimos alguns concertos: uma torrente de percussão, metais dardejando melodias, reverberações espiralando pelo espaço sónico, máscaras escondendo o rosto dos músicos. Throat Permission Cut, o disco de estreia, é resultado dessa experiência de palco, da música em roda livre. Não o confundamos, porém, com um álbum ao vivo.

A música que foram criando em concerto, quer em Portugal quer em cidades como Paris, Berlim, Bruxelas ou Corunha, foi a matéria-prima trabalhada em estúdio por Jonathan Uliel Saldanha (é ele o HHY e é também, juntamente com Filipe Silva, fundador do colectivo artístico portuense Soopa), produtor e compositor que conta no seu percurso com colaborações com Adolfo Luxúria Canibal, Adrian Sherwood, Mark Stewart, Steve Mackay, o saxofonista dos Stooges, ou Carlos Zíngaro. Como refere a própria banda, a ideia era que a gravação se transformasse em eco da efemeridade da experiência ao vivo. 

O que ouvimos nas cinco faixas que compõem a edição, longas peças que se desenvolvem de forma orgânica, como se cada textura sonora se reproduzisse lentamente, mutando-se discreta mais decisivamente perante os nossos ouvidos, é música sem centro definido. Interessa assaltar-nos os sentidos, sentir que há um espaço novo que se cria, incerto, misterioso, envolvente, através da conjugação de percussão (João Filipe, Frankão, Filipe Silva e Brendan Hemsworth), metais (Álvaro Almeida, André Rocha e Rui Fernandes), baixo (Rui Leal), teclados e manipulação sonora. Em Isaac, the throat, os metais surgem como vagas, quais clarins de orquestra épica chorando, altivos, um requiem. À medida que a música avança, porém, a luxúria da percussão impõe-se, o som retalhado do trompete tremeluz sobre as vagas originais e a majestosidade inicial torna-se hipnótica, quase terapêutica — não temos referências precisas, temos o som e a forma como nos conduz, à uma telúrico e fora deste mundo. É uma experiência intensa, guiada pela intuição mas trabalhada com olhar (que dizemos?, ouvido) de sonoplasta: é voodoo caribenho e as mutações jazz da década de 1970, quando colectivos como os Oneness Of Juju se viraram para África em busca de identidade; é orquestra modernista marginal e banda-sonora de guião improvisado. 

Ao longo dos cinco temas, manter-se-á o calor luxuriante das percussões, mas alteram-se as tonalidades: reverberações electrónicas e samples de voz cruzam o ritmo lento, opiáceo, de BarbaronLewopa de cristal pode ter o Haiti inscrito no título (lewopa significa “leopardo” em crioulo haitiano) e é certamente atravessada pela sensação de se tratar de um som emanando de um espaço natural mitificado — mas desviando o olhar enquanto viajamos deparamos com a música copta que Mulatu Astatke transformou em transe jazz e uma ponte entre o Haiti e a nostalgia avassaladora da folk do centro europeu.

Essa capacidade de ser tão diversa mantendo um centro definido (a bateria minimal e a cadência contínua das percussões, bem como o sopro dos metais, são o pulsar cardíaco desta música) é a grande vitória de Throat Permission Cut, obra de uns HHY & The Macumbas que são realismo mágico narrado em linguagem dub. Música viva. Música como eco, enunciado pelos próprios, de uma realidade alterada: mergulhamos nela e nadamos para longe. Não sabemos onde seremos conduzidos, mas temos por certo que a viagem será compensadora.

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