Intermitentes em França: uma bomba prestes a explodir

Pré-avisos de greve, manifestações e divisões alimentam o dia-a-dia dos profissionais do espectáculo em França. A recusa do novo acordo salarial pode levar à anulação de vários festivais de Verão.

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Ensaio do espectáculo Empty Moves, do coreógrafo Angelin Preljocaj, que deveria ter aberto o Festival de Dança de Montpellier Pascal Guyot/AFP

Para já, a abertura do festival de dança de Montpellier  o primeiro grande blockbuster de Verão prevista para este domingo, com a produção Empty Moves, do coreógrafo Angelin Preljocaj, foi cancelada após um grupo de profissionais do espectáculo ter contrariado a decisão maioritária tomada em assembleia-geral, no sábado. 

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Para já, a abertura do festival de dança de Montpellier  o primeiro grande blockbuster de Verão prevista para este domingo, com a produção Empty Moves, do coreógrafo Angelin Preljocaj, foi cancelada após um grupo de profissionais do espectáculo ter contrariado a decisão maioritária tomada em assembleia-geral, no sábado. 

Este é o mais recente episódio do braço-de-ferro que opõe os intermitentes do espectáculo ao governo francês, por culpa de um acordo que todos consideram prejudicialOs problemas começaram no início de Junho, quando a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) fez um pré-aviso de greve em reacção à intenção do governo de ratificar o acordo laboral de 22 de Março proposto pelo MEDEF, a concertação patronal francesa, respeitante ao regime de intermitência, e que os profissionais das áreas do espectáculo e do audiovisual consideraram ser-lhes prejudicial.

Em causa estão dois anexos, o 8º e o 10º, respeitantes à condições dos intermitentes e que prevêem uma redução nas contribuições que o Estado paga aos profissionais independentes nos períodos entre contratos, ao mesmo tempo que são aumentadas as quotizações obrigatórias de todos os profissionais contratados.

Depois de duas semanas de indecisão, com a ministra da Cultura, Aurélie Filippetti, a dizer que a responsabilidade do acordo era do Ministério do Trabalho, o primeiro-ministro Manuel Valls decidiu surpreender numa conferência de imprensa a 19 de Junho, três dias depois de uma manifestação que juntou mais de 600 pessoas junto ao Ministério da Cultura.

Mas foram vários os sinais contraditórios enviados por uma comunicação que, disse a plataforma dos intermitentes, esquecia que, na oposição, o Partido Socialista se havia oposto a uma nova lei da redistribuição salarial. Se, por um lado, Valls disse que o acordo em cima da mesa devia ser revisto, criando para tal uma comissão de trabalho que deverá apresentar resultados até Dezembro, por outro, não se furtou à sua assinatura. E, ao mesmo tempo que a sua missão prioritária, como primeiro-ministro, é encontrar forma de cortar 50 milhões de euros, ainda este ano, nas despesas do Estado, Valls comprometeu-se a compensar, sem explicar como, a diferença entre o valor até agora pago e aquele que é proposto pelo acordo que irá ser ratificado.

O valor em causa oscila entre os 40 e os 90 milhões de euros/ano. Mas o que apanhou todos de surpresa foi o compromisso de não baixar o orçamento da Cultura até 2017: 7,26 mil milhões de euros. Isto num ano em que ao mesmo orçamento foi feito um corte de 69 milhões de euros.

Em reacção, a CGT decidiu lançar um novo apelo de greve, agora para o mês de Julho, e marcar uma manifestação para a próxima quinta-feira, dia 26, para mostrar como a questão dos intermitentes não existe à margem da precaridade laboral. A palavra de ordem é “greve massiva” a 4 de Julho, dia de abertura do Festival de Avignon, a mais importante manifestação de todo o Verão de festivais em França.

Estão ainda por calcular as perdas, mas o impacto da anulação do festival, como aconteceu em 2003, também por causa da greve dos intermitentes, é da ordem do milhão de euros/dia (incluiu o impacto negativo na restauração e alojamento). Fonte do festival admitia ao PÚBLICO que, se a greve avançar para lá do dia 4, o festival corre o risco de ser anulado na sua totalidade.

Essa hipótese é a "bomba atómica" que Valls quer evitar a todo o custo, até porque, como Olivier Py, o director do Festival de Avignon, não se cansou de repetir em todas as entrevistas, “não há forma de garantir que um impacto directo de 5 a 7 milhões de euros não se vá sentir nas edições de 2015 e 2016”.

Mesmo que, na última semana, se tenham multiplicado os comunicados, as tomadas de posição e os gestos mais ou menos simbólicos, multiplicaram-se também as divisões entre os que defendem as acções concretas, como a paralisação momentânea ou a greve imediata. E, mesmo dentro do sector cultural, não é claro o rumo que estes protestos podem tomar.

Um profissional da maquinaria de cena, presente na assembleia-geral de quinta-feira em La Villete, Paris, que pediu para não ser identificado, e que há dez anos esteve em Avignon, dizia que os intermitentes deviam ter aprendido: “Não nos soubemos organizar. Mesmo dez anos depois, não sabemos falar de política. A mensagem de Valls foi um truque muito bem preparado. Deixámo-nos enganar. É triste. Ainda tenho esperança, mas acho que vamos embater num muro.”

É por isso que o apelo a uma “greve massiva” para o início de Avignon tem uma importância mais do que simbólica, numa altura em que as sondagens não esclarecem de que lado está a população, e em que há apelos constantes ao fim de uma excepção salarial. “Estamos numa guerra política e eles estão a ganhar”, disse ao PÚBLICO um técnico de som. “Estamos cansados, mesmo que tenhamos muita gente importante do nosso lado”, acrescentou.

Num país onde a Cultura tem um peso de 3,2% no PIB – ou seja, 57,8 mil milhões de euros de benefícios directos e indirectos –, discutir o regime de intermitência não é uma questão de somenos importância. Terá sido por essa razão que o  Presidente François Hollande, numa visita-surpresa ao Instituto do Mundo Árabe, na noite de sábado, durante a Festa da Música, disse aos jornalistas presentes “defender sempre a Cultura”: “A minha responsabilidade é assegurar que a Cultura mantenha o seu lugar de destaque em França, e que o país se possa exprimir por todo o mundo graças a ela”.

A intermitência não é nem um estatuto nem uma profissão, mas sim um regime específico, criado em 1936 pelo sistema cinematográfico que procurou assegurar aos técnicos e profissionais condições de subsistência nos períodos de interrupção do trabalho. Quase 80 anos depois, são 110 mil – ou seja, um em cada cem assalariados de todo o regime laboral nacional – aqueles que beneficiam deste sistema de protecção salarial, que é sustentado por todos os profissionais. Desses, 49,1% pertencem aos sectores do espectáculo e do audiovisual (30,4% são técnicos e 18,7% são artistas). Os restantes 50,9%, ainda que em maioria, incluem diferentes áreas profissionais: gráficos e designers (30,9%), artistas plásticos (9,4%), fotógrafos (7,4%), autores literários e argumentistas (3,2%).

Quando não estão sob contrato, estes trabalhadores recebem do Unedic (uma estrutura aparentada ao português Instituto de Segurança Social, mas aqui dirigido pelos diferentes parceiros sociais, incluindo os sindicatos) o equivalente médio ao número de horas feitas no período de trabalho. É uma condição excepcional na Europa, que permite aos profissionais receber por mês, em média, 2 mil euros.

Em resumo, o sistema de intermitência francês permite que, entre contratos de trabalho, os profissionais possam continuar a desenvolver a sua actividade sem prejuízo da sua condição salarial, ao mesmo tempo que financia a criação e suscita o desenvolvimento artístico.

O que o acordo de 22 de Março propõe é uma redução da contribuição patronal, estreitando assim a margem percentual e, desse modo, reduzindo o custo nos orçamentos anuais das empresas. Os dados mais recentes sobre este universo, que remontam ainda a 2011 e foram apresentados pelo jornal Le Monde, apontavam para um défice de 25% no regime de compensação provocado por 3,5% dos seus beneficiários. Por comparação, o regime de quotização do conjunto dos trabalhadores em França arrecadou 31,9 mil milhões de euros originando 33,4 mil milhões de despesas. No mesmo período, o regime de quotização para os intermitentes recolheu 246 milhões de euros, mas custou 1,27 mil milhões de euros de prestações.

Num violento artigo publicado este sábado no Le Monde, o sociólogo e jornalista Miguel Guerrin escrevia que após a solução de urgência de Valls, que parecia ter conseguido salvar os festivais de Verão, era preciso olhar para o problema estrutural que os intermitentes representam para a balança comercial do sector laboral. “Os intermitentes recebem quatro a cinco vezes mais do que aquilo que entregam ao Estado; é por isso indecente que sejam as caixas de supermercado a pagar este sistema”.

A luta – insistem todos – está em trazer os trabalhadores, e o público, para o lado dos profissionais. O que se discute é mais vasto do que diferenças salariais, defendeu o filósofo Jacques Rallite num texto que se tornou num manifesto lido, por exemplo, no Théâtre Monfort, onde o grupo português Oquestrada actuou na passada terça-feira: “A crise não torna a Cultura menos necessária, ela torna-a, pelo contrário, mais indispensável. A Cultura não é um luxo. É o melhor antídoto contra todos os racismos, anti-semitismos, comunitarismos e outros pensamentos repressivos sobre o indivíduo”.

No sábado passado, aquela que deveria ser a noite de estreia de Palermo, Palermo, da companhia Tanztheater Wuppertal da coreógrafa Pina Bausch, foi transformada num ensaio geral, em consequência dos atrasos provocados pelas manifestações de 16 de Junho e das assembleias-gerais que todos os dias acontecem no Théâtre de la Ville. Antes do espectáculo, perante uma sala esgotada, os assalariados do teatro municipal de Paris juntaram-se aos intermitentes e, com o apoio de Lutz Forster, actual director da companhia alemã, mostraram o seu empenho na luta política.

Emmanuel Demarcy-Mota, o luso-francês que é director do Théâtre de la Ville, explicou que, ao longo de toda a temporada, o teatro contrata 300 intermitentes sem os quais os espectáculos não se podem realizar. “Sem eles, o nosso trabalho perde o seu apoio e fica coxo”, disse, antes de todos avançarem um passo e tirarem um sapato que foi colocado no palco perante os aplausos emocionados da sala.

Os teatros apresentam nos seus sites mensagens de solidariedade e circulam várias petições que pedem ao governo para que não deixe de negociar. Mas houve quem fosse mais longe, porque “só com acções concretas se consegue atingir os objectivos”, dizia ao PÚBLICO uma maquinista presente na reunião de quinta-feira no Parc de la Villete.

Por todo a França, vários teatros e festivais vão ensaiando formas de acção, em solidariedade ou por impossibilidade de outra opção. O festival de dança de Uzés (13 a 18 de Junho) foi anulado depois de a direcção ser confrontada com a ausência de garantias de segurança para as equipas artísticas e para os espectadores. Na Cité Internationale, em Paris, o fim-de-semana internacional, que juntava doze espectáculos – entre eles Enciclopédia X, da companhia portuguesa Cão Solteiro –, foi substituído, numa decisão por maioria, por um conjunto de debates com o público. No Théâtre de La Villete, a retrospectiva do coreógrafo Josef Nadj foi cancelada, incluindo os ensaios abertos para a nova criação que se estreará a 18 de Julho, no Festival de Almada.

Mas há, também, quem queira decidir tudo, dia-a-dia. E depois voltar atrás. Como já atrás foi referido, o festival de dança de Montpellier viu o seu espectáculo de abertura – Empty Moves, do coreógrafo francês Angelin Preljocaj –cancelado pela intervenção de um grupo de intermitentes. Agora, fica tudo em aberto quanto à restante programação, onde se inclui a apresentação de De Marfim e Carne, da portuguesa Marlene Monteiro Freitas, nos dias 2 e 3, precisamente os que antecipam a grande manifestação marcada para 4 de Julho.

Face a estes acontecimentos, o Ministério da Cultura anunciou que esta terça-feira irá decorrer um encontro de concertação com todos os parceiros, de modo a que “todos possam contribuir para um sistema mais justo e mais definitivo”.