Insuperável fantasia rock’n’roll

A reedição dos três primeiros álbuns dos Led Zeppelin mostra uma banda intocada pela passagem do tempo

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Reeditados, remasterizados e acrescidos de extras, os Led Zeppelin continuam a reinar, imaculados, no panteão dos deuses rock’n’roll

Não o devemos lamentar. Para quê macular um estatuto mítico quando temos a música criada por quatro ingleses conhecedores profundos do blues e da soul, do rock’n’roll, da folk e dos meandros do estúdio enquanto poderosa ferramenta criativa?

O único regresso que interessa é o regresso aos discos. Essa a conclusão que retiramos depois de ouvir Led ZeppelinII e III, os três primeiros álbuns da banda de Jimmy Page, Robert Plant, John Paul Jones e John Bonham, reeditados em CD e em vinil, remasterizados e acrescidos de extras 20 anos depois da transposição para CD.

A primeira boa notícia é que as novas edições, num processo comandado por Jimmy Page, fazem justiça aos originais. Cada instrumento ocupa o seu lugar; vivíssimo, o baixo de John Paul Jones destaca-se como se impõe e as guitarras de Page exibem-se nos pormenores mais intrincados.

A segunda boa notícia é que tudo continua na mesma. Os Led Zeppelin reinam, ainda imaculados, no panteão dos deuses rock’n’roll. Formados por dois velhos ratos de estúdio da indústria musical, veteranos precoces, Jimmy Page e John Paul Jones, e por dois talentos exuberantes à espera do seu momento, o Robert Plant com um olho no blues e outro na rota hippie de Katmandu, e esse insuperável baterista chamado John Bonham, ágil como um leopardo, poderoso como um elefante, os Led Zeppelin inventaram, de certa forma, os anos 1970: o rock enquanto arma hedonista disparada por músicos que pareciam pairar acima dos comuns mortais. Devolveram ao rock’n’roll a sexualidade que o blues sempre usou enquanto sugestão — Robert Plant, dono de uma voz gloriosa, é líbido em acção sem qualquer discrição. Fizeram-no enquanto lhe subiam o volume; enquanto Jimmy Page aperfeiçoava a nobilíssima arte do riff; enquanto, digeridos os Cream ou Jimi Hendrix, se tornava evidente o poder de uma jam em roda livre; enquanto alargavam o espectro sonoro à folk e a um psicadelismo ora pastoral ora vagamente mitológico. 

Tudo isto está devidamente exposto nos três primeiros álbuns da banda, início do processo de reedições que contemplará toda a discografia dos Led Zeppelin. Impressionam em Led Zeppelin, o primeiro, de 1969, a modernidade da produção, o arrojo dessa bad trip, inesquecível pelas boas razões, chamada Dazed and confused (o blues distorcido em caleidoscópio de cores garridas), o proto heavy metal de How many times? (mas heavy metal com ginga na anca, mui dançável), o punk antes do punk de Communication breakdown e o bombástico ataque ao legado do blues feito em You shook me ou I can’t quit you baby. Impressiona no segundo, II, igualmente editado em 1969, a sensação de ser um álbum completamente fechado: nele, todas as sínteses estavam feitas e depuradas; nele, o sentido de improviso e o cuidado na utilização do estúdio uniram-se na perfeição.

Whole lotta love e Heartbreaker já não são exactamente o blues, são outra coisa: música absurdamente física, ressoando pelo esqueleto ao sabor da tonitruante secção rítmica de John Paul Jones e John Bonham (groove descarado, quase exibicionista de tão perfeito) e agitando as sinapses enquanto Plant simula orgasmos em prime-time (leia-se na primeira canção do alinhamento) ou enquanto Page se lança sobre as seis cordas com ferocidade. Ao mesmo tempo, há sensibilidade para criar um folk-rock que cruza magistralmente bucolismo melancólico com estridência eléctrica que nos liberta dele (Ramble on será o melhor exemplo). 

Composto num retiro campestre galês, imortalizado na penúltima canção do disco, Bron-Yr-AurIII inverte a dinâmica de II. Começa com a cavalgada épica deImmigrant song, tem o blues tornado standard moderno da magnífica Since I’ve been loving you e a festividade rock’n’roll de Celebration day, mas sobressai o ambiente acústico, folk de raiz, folk apontando ao Magrebe (as orquestrações e as percussões da grandiosa Friends, a gentileza crepuscular de That’s the way, o banjo e a batida certeira, verdadeiramente rock-folk, de Gallows pole)III sobreviveu à passagem do tempo sem uma única ruga para mostrar. São os Led Zeppelin, monstro rock’n’roll filho e criador do seu tempo, a mostrarem as suas várias faces. Um portento. 

Sobram os extras, os segundos CD que acompanham cada uma das três edições. A acompanhar Led Zeppelin, o registo de um concerto no Olympia em 1969. Ouve-se em Dazed and confused o quão impressionante era John Bonham e o quão atento era Jimmy Page (ouviu Eddie Phillips, dos Creation, a aplicar um arco de violino na guitarra e apropriou-se da ideia). A baixa qualidade sonora é compensada pelo fôlego das interpretações.

Quanto aos extras de II e III, são meras curiosidades a que poucos regressarão depois de ouvidos a primeira vez. Versões alternativas a que faltam elementos de voz ou versões instrumentais (nada de especialmente revelador), e alguns inéditos, como a versão de Key to the highway/Trouble in mind ou Jennings farm blues, ambos deIII, que se percebe porque se mantiveram inéditos.

Tudo o que interessa está nos álbuns originais. Neles, a grande banda da década de 1970, aquela que em vida habitava um mundo à parte e que parecia não encaixar em lado nenhum, não tem nada fora do lugar. Tudo certo, tudo perfeito. Uma insuperável fantasia rock’n’roll. 

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