Foi fraquita a festa, pá

É impressionante como um país pode gostar tanto de borga e, ao mesmo tempo, ser tão mau em comemorações.

Dos discursos da Assembleia da República às festividades do Largo do Carmo, terminando na encomenda de uma peça sobre o 25 de Abril cheia de violinos a Rodrigo Leão, o que tivemos foi um acumular de banalidades dignas de Américo Tomás. Tivesse Joana Vasconcelos aceitado o convite de Assunção Esteves para atapetar uma chaimite com cravos vermelhos e as comemorações teriam feito o bingo de tudo o que é política e esteticamente correcto no Portugal de 2014.

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Dos discursos da Assembleia da República às festividades do Largo do Carmo, terminando na encomenda de uma peça sobre o 25 de Abril cheia de violinos a Rodrigo Leão, o que tivemos foi um acumular de banalidades dignas de Américo Tomás. Tivesse Joana Vasconcelos aceitado o convite de Assunção Esteves para atapetar uma chaimite com cravos vermelhos e as comemorações teriam feito o bingo de tudo o que é política e esteticamente correcto no Portugal de 2014.

Nada contra Rodrigo Leão ou Joana Vasconcelos, como é óbvio. O meu ponto é outro: é a banalidade sem sal, um conceito que Hannah Arendt se esqueceu de estudar e nos teria dado imenso jeito. Tirando, a espaços, o discurso de Cavaco Silva, que num par de frases conseguiu olhar para Portugal além do clássico palmo à frente do nariz, aquilo a que assistimos foi a uma redução de 40 anos de liberdade e democracia ao nosso presente mais desgraçado, fosse para fazer comparações saloias entre a “noite” da troika e a “noite” do Estado Novo (Luís Montenegro), fosse para mais uma vez defender a inexistência de legitimidade democrática fora das baias ideológicas da esquerda nacional (cf. a brigada do Largo do Carmo).

Aquilo que de mais interessante li sobre o Portugal livre construído nos últimos 40 anos, e sobre como isso merece ser celebrado, veio, para variar, da boca de um estrangeiro. O músico brasileiro Pierre Ardene, numa carta ontem publicada neste jornal, elencava numerosos motivos para ter orgulho do país, muito para além do pastel de Belém e do vinho do Porto. É certo que o texto não resistia à mitologia dos navegadores que descobriram o mundo “em caravelas que mais pareciam casquinhas de ovo”, esquecendo que os filhos desses navegadores são os brasileiros – nós, os portugueses, somos filhos dos que ficaram cá. Mas, pelo menos, Ardene vê claramente aquilo que em nós parece condenado à invisibilidade: a riqueza do país, da sua geografia, da sua cultura, dos seus habitantes, dos seus hábitos, e de um progresso que devemos efectivamente à liberdade e à democracia que Abril nos ofereceu, ainda que tenhamos manifestas dificuldades em celebrá-lo.

Não é de hoje. Há uma qualquer maldição que insiste em reduzir Portugal à mera descrição da tal banalidade sem sal e a uma desvalorização generalizada do trabalho sobre a memória. O resultado dessa cegueira está à vista: foi um francês a escrever a melhor biografia de Pessoa (Robert Bréchon), um italiano a ficar obcecado por ele (Antonio Tabucchi), um corso a fazer as recolhas da nossa música tradicional (Michel Giacometti), um espanhol a realizar o primeiro filme sobre fado (Carlos Saura), um brasileiro a investigar as suas origens (José Ramos Tinhorão), um suíço a filmar A Cidade Branca (Alain Tanner) e até um alemão a assinar o melhor documentário sobre o PREC (Torre Bela, de Thomas Harlan). É evidente que dispenso viver num país alienado das dificuldades do presente. Mas festejar 40 anos de liberdade de forma tão murcha é bastante triste. Valemos muito mais e merecíamos muito melhor.