A fogueira das vaidades

Martin Scorsese filma uma história verídica da decadência de Wall Street como um conto (a)moral, escarninho e selvagem, de que é difícil gostar verdadeiramente.

Martin Scorsese já não tem mafiosos para filmar como só ele soube - é a primeira coisa que vem à cabeça quando percebemos que O Lobo de Wall Street avança a 300 à hora pelas ruas de Nova Iorque e dos seus subúrbios abaixo com a energia desesperada de quem foge para a frente para esquecer o que o persegue. Na falta de mafiosos, Scorsese filma o seu equivalente mais próximo contemporâneo: os corretores e banqueiros que fazem fortuna a brincar com o dinheiro dos outros, mas com o glamour criminoso dos goodfellas substituído por um exibicionismo novo-rico grotesco e puramente ostentatório. (Ironia: o argumento de O Lobo de Wall Street deve-se a Terence Winter, “aluno” dos Sopranos, a série televisiva que mais contribuiu para “matar” a imagem dos velhos mafiosos tal como os conhecíamos.)É, então, dessa ambição desmesurada pelo poder do dinheiro que vem, primeiro, a velocidade furiosa destas três horas esmagadoras, cansativas, e, depois, a ironia escarninha e selvagem com que Scorsese conta esta história de “senhores do universo” que caem do poleiro. O Lobo de Wall Street é uma adenda mal-comportada, indomável, ao ciclo de filmes sobre os pecados do investimento financeiro que vai do Wall Street de Oliver Stone ao Blue Jasmine de Woody Allen passando por O Dia Antes do Fim de J. C. Chandor e, sobretudo, pela Fogueira das Vaidades de Tom Wolfe adaptada por Brian de Palma. É uma adenda verídica do género “contado ninguém acredita” que teve lugar na década de 1990, contada sem escrúpulos nem remorsos do lado de dentro, pelos olhos de Jordan Belfort, corretor nova-iorquino que fez fortuna a vender “lixo” financeiro, com Leonardo di Caprio a emprestar o seu charme de menino de ouro à personagem mais indesculpável que já interpretou (é legítimo pensar no Apanha-me se Puderes de Spielberg, só que Scorsese não está para dar abébias compreensivas).


A ascensão e queda de Belfort é visível como uma antecipação presciente da recessão de 2008 e filmada por Scorsese como um conto (a)moral alimentado a sexo e cocaína, tendo como heróis suburbanos ambiciosos que cumpriram o sonho americano do modo mais niilista e egoísta possível e descambando imperceptivelmente numa espiral sem fundo de decadência sem penitência nem salvação possível. Não são, na essência, assim tão diferentes dos mafiosos mais tradicionais - mas parece faltar-lhes aquele “código de honra” entre gangsters, e nisso convirá não esquecer o peso moral que o cinema de Scorsese sempre transportou e que volta aqui ao de cima no excesso inesgotável de gente que se deixou enfeitiçar pelo poder e pelo dinheiro. Isso não faz deste um grande Scorsese; talvez apenas um filme de veterano a tentar filmar “como antes” mas sem a mesma fé de antes, confrontado com o travo amargo de já não ter as mesmas histórias para contar (ou de apenas conseguir filmar as mesmas histórias de sempre?).

Um turbilhão de devassidão em modo duplo de atracção/repulsão, que torna O Lobo de Wall Street num objecto que se admira pelo virtuosismo e pela pontaria com que cumpre os propósitos que se atribuiu mas de que dificilmente se gosta. Mas dificilmente se gosta do filme, ou do espelho que ele nos ergue ao rosto?

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