Onde é a Serra do Caldeirão?

Convidada pelos Encontros DeVIR/CAPa, de Faro, a bailarina e coreógrafa Vera Mantero foi à Serra do Caldeirão. O resultado dessa viagem “etnológica” é uma peça — um solo multimédia, onde convergem várias artes — apresentada na semana passada em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, (antes apresentada em Évora), chamada Os serrenhos do Caldeirão: exercícios em antropologia ficcional. Quem teve a ideia extravagante de fazer tal convite? Que faz uma bailarina na Serra do Caldeirão? Tudo menos dançar, certamente, pois tudo aí é imobilidade, já não há ninguém e só se ouve o silêncio: o bailarino que deixa de ouvir a música não pode continuar a dançar, ou então faz movimentos grotescos. É verdade que na dança contemporânea a música pode ser o puro ruído, ou ser apenas música implícita. Mas o silêncio da serra é outra coisa: é a suspensão de todo o movimento humano. Por isso, a peça acaba por ser muito mais um poema — um poema como os de Artaud, “um homem que, como diria Herberto Helder, tinha as correntes da terra ligadas às correntes do poema”, diz Vera —, já que a poesia tem um pacto antigo com o silêncio. Não entendamos, por poesia, aquela coisa enfática e decorativa que faz as delícias das almas sensíveis, sempre à beira da exclamação patética, mas a palavra que recebe e transmite vibrações extremas, “as correntes da terra”. Se quisermos, o solo da Vera também pode ser um romance, uma ficção antropológica (“antropologia ficcional”, chamou-lhe ela, convidando o espectador a não acreditar em tudo o que ouve). O que não pode ser é um trabalho etnográfico, segundo o consabido modelo da viagem ao país dos diferentes ou até dos arquétipos, por mais que utilize material vídeo e audio do arquivo de Michel Giacometti. Seja o que for — poema, romance, ensaio ou imaginação antropológica sob a forma de um solo de dança que de dança tem muito pouco —, é uma obra que resulta num diagnóstico político e cultural de vasto alcance. Ela mostra-nos que um problema poético pode ter um valor epistémico e vice-versa. E mostra também, no confronto com a “festa” dos diferentes — os serrenhos — que houve um tempo em que a palavra que canta e celebra era a mesma que a palavra que faz, que realiza. E essa palavra traçava um círculo mágico, no interior do qual tudo é muito mais dado à alegria do que à melancolia. Ninguém hoje quereria certamente voltar à vida antiga da Serra do Caldeirão (onde quer que ela se situe, na etnografia fantasiosa de Vera Mantero) nem aos seus pressupostos sociais, culturais e materiais. Mas a peça faz-nos sentir que nós, homens modernos, perdemos os nossos gestos, como disse um filósofo. Os gestos mais simples e quotidianos tornaram-se estranhos ou foram absorvidos por uma máquina negativa. Vera Mantero foi à Serra do Caldeirão não para fazer espionagem antropológica, mas para nos mostrar os gestos que perdemos, para nos dizer que a festa antiga acabou e que, mesmo que não tenhamos vontade nem poder de restaurá-la, ela persiste, na sua vida póstuma, como um vazio, uma negatividade. E isto, que um competente analista dirá que é esquizofrenia, tem uma dimensão trágica. É dessa tragédia que fala a peça. O silêncio total que Vera encontrou na Serra outrora habitada é o índice da tragédia da bailarina que tem de continuar a dançar quando já não há música nem festa e que, por isso, se agarra a um tronco oco de cortiça, isto é, um corpo sem órgãos, para representar um corpo co-extensivo à natureza, o corpo intensivo e imanente do Homem Árvore, o poema de Artaud que Vera recita no palco.

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