Levar a escola até ao cão para tentar perceber o seu ponto de vista

No dia em que entra em vigor uma nova legislação que endurece a pena para donos e criadores de cães perigosos, o PÚBLICO mostra outra realidade para quem sempre quis ter um cão.

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Quando a escola vai até ao cão Romana Borja-Santos, Joana Bourgard

Tem apenas cinco meses mas já se sabe sentar e deitar sozinho, nunca precisou de fraldas e (às vezes) responde pelo nome. Contudo, por enquanto, ainda não consegue conter os pulos, uns latidos com som de choro e umas lambidelas quando chegam visitas – mas está no bom caminho com ajuda de aulas. A escola vem a sua casa. O aluno chama-se Baruch e é um Schnauzer Miniatura. Pede festas durante a entrevista ou dorme. Quanto a falar, não se importa de passar a palavra. A sua história é contada pela dona, Raquel Alves, e pela treinadora de cães Alexandra Santos.

Raquel Alves vive em Lisboa há dois anos e sempre quis ter um cão. Prestes a terminar o seu doutoramento em Paris achou que seria a altura de dar o passo. “Escolhi o Baruch, um Schnauzer Miniatura porque não tenho um apartamento assim tão grande e pelo que me informei antes de o adquirir é um cão muito sociável tanto com adultos como com crianças e que se adapta muito bem a espaços pequenos. Para quem tem alergias, que não é o meu caso, não larga pêlo praticamente nenhum”, explica Raquel, enquanto segura no cachorro enfeitado com um laço vermelho ao pescoço e uma chapa com o seu nome e contactos para o caso de se perder.

Para a treinadora Alexandra Santos, que está agora a ajudar o Baruch a aprender mais depressa o que é esperado de um cão no mundo dos humanos mas sempre “tentando perceber o seu ponto de vista”, esta é a situação ideal: olhar para o nosso estilo de vida e para a nossa casa antes decidir que cão comprar ou adoptar e, depois, trabalhar com os animais antes de surgirem problemas mais sérios.

Uma vocação encontrada com a boxer Peggy

Alexandra tem 52 anos e desde a década de 80 que começou a treinar cães. “Tinha seis anos quando os meus pais me ofereceram a minha primeira cadelinha, a Peggy, uma boxer. Senti logo uma grande afinidade e até me dava melhor com cães do que com pessoas”, conta. Chegou a passar por Psicologia Clínica na universidade, ainda quando vivia na África do Sul, mas rapidamente percebeu que esse não era de todo o caminho.

Especializou-se em formação e treino de obediência no Boxer Club da África do Sul e depois aprofundou os conhecimentos no Animal Care College, no Reino Unido, e no Companion Animal Sciences Institute, no Canadá. Dá aulas particulares, sempre na casa do cliente ou no espaço combinado. Agora, perante a falta de informação fidedigna que considera haver na Internet para quem quer escolher um cão e, depois, treiná-lo por conta própria, Alexandra deu um novo passo e acaba de publicar o livro “O meu cão e eu” (Ed. A Esfera dos Livros).

O livro passa por vários temas. A escolha do cão, as características de algumas raças, os cuidados a ter em termos de veterinário e alimentação, a preparação para a chegada de um bebé ou para quando o cão é sénior, alguns princípios relacionados com o treino, as recompensas e o castigo, ou os brinquedos, entre muitos outros. “Infelizmente na Internet há muita informação pouco fidedigna e as pessoas ficam sem saber o que fazer. Muita coisa não tem fundamento científico nenhum porque a ciência é uma coisa chata de se ler”, diz a treinadora, que lamenta que as pessoas acabem por se guiar pelos mitos e “histórias de encantar de que o cão descende do lobo e é um animal de matilha que chega a casa e tenta mandar no dono”.

Cães que mordiscam ou que mordem mesmo, que são desobedientes, que saltam para as pessoas, que puxam muito a trela, que ladram demasiado, que não conseguem estar sossegados ou que têm ansiedade quando se separam do dono são os problemas mais comuns para quem procura a ajuda de Alexandra Santos, que prefere que sejam sempre os donos a dizer porque querem as aulas e o que pretendem ver resolvido. Mas também já teve pedidos “ridículos”, como tentar que um cão de interior se habituasse a viver na rua e a não pedir atenção às pessoas. Deu uma aula e não quis mais.

As recompensas de Baruch na quarta aula

Baruch está na quarta aula. As duas primeiras foram em casa, para aprender a fazer as necessidades no sítio certo. Agora treina na rua. O PÚBLICO assistiu à quarta aula, em que o Schnauzer está a aprender a andar ao lado da dona sem puxar a trela, a parar antes das passadeiras e a obedecer sempre que é chamado pela dona – mesmo que esteja a ser distraído com comida por outra pessoa.

Quando recebe uma ordem de Alexandra ou de Raquel (que deve ser sempre dada da mesma forma e com palavras simples) e passa a prova com sucesso, logo no momento é feito um barulho com a ajuda de um aparelho chamado “clicker” e dada uma guloseima como recompensa. Quando falha, fecha-se a recompensa na mão e mostra-se a Baruch o que perdeu. O aparelho serve apenas para tornar mais rápida a associação do cumprir a ordem à recompensa. “É um trabalho de equipa. O que faço na realidade é ensinar as pessoas a treinarem os seus cães”, diz Alexandra.

Isto porque Alexandra é adepta da escola pavloviana em que se recompensa e em que mostra ao cão o que pretendemos em vez de o castigarmos. “Quando damos um castigo um cão não está necessariamente a aprender o que deve fazer. Quanto muito aprende o que não deve fazer. Então vai por tentativas e vai sendo castigado até acertar na coisa certa. Muitas vezes o castigo não tem a função de educar mas de aliviar a nossa própria frustração e é preferível focarmo-nos naquilo que queremos que o cão aprenda e recompensar tudo o que ele faz bem feito. Quando já sabe, na fase de manutenção de um comportamento, só damos a recompensa de forma aleatória até deixar de haver recompensa”. Um truque está em ter muitos brinquedos, para redireccionar a atenção do cão e evitar o tédio porque, brinca a treinadora, ele “não sabe ligar a televisão ou limar as unhas” para se entreter.

Mito do “líder da matilha”

A especialista não concorda, por isso, com o mito de haver um líder da matilha que se espalhou ainda mais com alguns programas de televisão, nomeadamente com o famoso “Encantador de Cães”, de Cesar Milan. Para Alexandra Santos a metodologia da matilha é um “paradigma perigoso”. E dá um exemplo: quando um cão se encurrala porque está com medo e o dono o arrasta corre o risco de numa segunda ou terceira repetição de ser mordido e não é por o cão estar a ser dominante, mas simplesmente por estar com medo.

“Fizemos o que não devíamos ter feito. Forçar. Até um ser humano nesta situação seria assim e não poderíamos dizer que estava a ser dominante. Porque é que há essa fixação da dominância com os cães? O cão doméstico já não é lobo, é cão. Tem comportamentos e um cérebro diferente”, acrescenta. Aliás, segundo a especialista, “as hierarquias não são estabelecidas entre membros de espécies diferentes. Em qualquer programa nunca vemos crocodilos a estabelecer hierarquias com hipopótamos e um cão sabe perfeitamente que nós não somos cão. Mas como tem um sistema de comunicação muito mais limitado comunica connosco como comunica com os outros cães”.

Além disso, Alexandra defende que muitas vezes são os humanos a dar os sinais errados. “Se um cão é agressivo e nós fugimos ele aprende que a agressividade resolve os problemas todos, mas isso não significa que esteja a ser dominante”. Apesar destes propósitos gerais, a treinadora defende que a decisão de ter um cão deve ser muito ponderada, assim como o animal a escolher. O primeiro passo a dar é decidir se queremos um cão de exterior ou de interior.

“Partindo do princípio que queremos que seja de interior temos de saber o nível de energia daquele cão. Um Jack Russell é pequenino mas é uma pilha eléctrica e as coisas podem não correr tão bem como com um São Bernardo que é mais pachorrento e que, no entanto, é enorme. A escolha tem a ver não tanto com o tamanho mas mais com o tipo de energia do cão”, explica.

Conhecer a história dos pais ou confiar nas associações

A treinadora aconselha que os donos tentem sempre conhecer os pais e a história do cachorro e, nos casos de quem adopta, que confiem nos conselhos das associações e canis, já que as pessoas tendem a guiar-se apenas pelo aspecto físico do cão. Destaca também a importância de não tirar os cães muito cedo da mãe, pois a dependência que tinham pode ser transferida para o dono e gerar, no futuro, problemas como ansiedade em relação à separação.

“Claro que uma boa sociabilização desde o início e uma boa educação acaba por contornar muitos dos problemas iniciais, mas não podemos esquecer a carga genética de um cão”, defende, sublinhando que a regra é para qualquer cão e não apenas para as raças ditas potencialmente perigosas, como se tende a pensar.

“Eu não consigo pôr um cão de pastoreio a guardar e muito dificilmente conseguirei treinar um cão de guarda para fazer pastoreio”, ironiza. E acrescenta que deve haver especial cuidado quando há crianças, sendo importante escolher um cão com “temperamento equilibrado” e que “tolere muito o toque”. Porém, alerta que há uma coisa a que chama a “lua-de-mel” e que são as duas primeiras semanas do cão em casa, em que normalmente não revela totalmente a sua personalidade, pelo que é importante que os donos estejam atentos a todos os sinais. Já quando está para chegar um bebé à família, é importante que o cão não seja excluído e que cheire as coisas do bebé e o quarto ainda antes do nascimento e que comece a ver alguns gestos como embalar ou mudar fraldas, nem que seja com treinos num boneco.

Questionada sobre se todos os cães precisam de um treinador especializado, Alexandra diz que apesar de ser a situação ideal que “os donos fazem muita coisa bem por intuição”, e lembra que antes de haver treinadores as pessoas já tinham cães. O único alerta que deixa é que na hora de escolher alguém, que se veja bem o currículo, pois há muitos amadores. E apela a que as pessoas não adiem demasiado as decisões, pois é mais difícil educar um cão com vícios de muitos anos.

No caso de Raquel e de Baruch a opção foi precisamente antecipar problemas e garantir que vai poder aproveitar a companhia do seu cão da melhor forma. Por agora o pequeno de cinco meses está no ensino mais “básico”, mas Raquel diz que quando tiver tempo gostaria que o seu cachorro fosse mais longe dos estudos. Baruch parece gostar das brincadeiras e aprende rápido a conquistar as recompensas. Mas, no final de cada aula, procura uma zona fresca e não resiste a uma soneca. Se for acompanhada de festas na barriga, melhor.
 
 
 
 
 

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