Em Sines Bassekou liga o wah-wah e Baloji levanta a voz

O Festival Músicas do Mundo assistiu já a duas espantosas passagens pelo palco do Castelo: o maliano Bassekou Kouyaté triunfou pela música, o congolês Baloji conquistou com um espectáculo fértil em tiradas políticas. A festa segue dentro de momentos

Fotogaleria
Bassekou Kouyaté trouxe a energia electrificada do rock e foi capaz de solos épicos Mário Pires
Baloji conquistou o público
Fotogaleria
Baloji conquistou o público Mário Pires
Fotogaleria
Dançar ao som de Celina da Piedade Mário Pires
Fotogaleria
O colectivo norte-americano Barbez Mário Pires

No momento em que Bassekou Kouyaté pisa o pedal wah-wah e transforma o som do seu ngoni há algo que nos recorda aquilo que é a tradição. Passado de pai para filho há várias gerações na sua família, o ngoni — um cordofone maliano semelhante ao alaúde — não é o mesmo nos vários pontos da cadeia familiar.

A linguagem de cada um respeita a dos seus antepassados sabendo onde deve encaixar-se, mas acrescenta-lhe o seu cunho, o momento histórico em que vive, o mundo que o rodeia. Por isso, o pedal wah-wah de Bassekou não é apenas um efeito sonoro ouvido às guitarras do rock e replicado: é também uma afirmação pessoal na sequência de músicos-familiares em que se insere e, por outro lado, um produto da resposta do músico ao caos instalado pelo golpe de estado no Mali, em Março de 2012, precisamente no dia em que começou a gravar o álbum Jama Ko. Perante um país em colapso e rajadas de tiros cujo eco chegava até à sua porta, enfiar a cabeça na música implicava aumentar o volume e seguir em frente.
Na sua espantosa actuação no Festival Músicas do Mundo (quinta-feira), em Sines, a mais impressionante nos dois primeiros dias desta 15.ª edição, o pedal wah-wah de Bassekou teria ainda um outro significado: o de tornar óbvio quem mandava naquele palco. Rodeado de familiares encarregues da voz, da percussão e dos restantes ngonis que formam o conjunto Ngoni Ba, o seu distinguia-se não apenas por um virtuosismo técnico e uma sageza emocional, mas também por esse som impositivo, dominador.
Sem abandonar um tom festivo, da música às vestes e à declaração taxativa de que as complicações causadas pelo islamismo radical no Mali estão sanadas, lançou esse seu encanto enfeitado com ecos de blues desérticos do mestre Ali Farka Touré, trouxe a energia electrificada do rock, foi capaz de solos épicos a desafiar o psicadelismo e a aceitar instalar-se em instrumentos artesanais, e de piscar o olho ao público com a citação de Lambada, popularizada em Portugal nos anos 1980.
A outra presença do Mali na primeira noite do festival, a dupla Amadou & Mariam, terá sido certamente responsável por uma das aberturas mais concorridas da história do festival. Mas aquilo que há de notável liderança em Bassekou Kouyaté falha actualmente neste duo, incapaz de repetir o brilhante concerto a que Sines assistiu em 2005. Não porque os talentos dos dois tenham encolhido neste período, mas porque o restante palco à sua volta foi ocupado por uma banda que se diria contratada a Sting nos anos 80. O desajuste estilístico e a subtileza de um tronco deixado cair sobre um pé (compensada, ainda assim, pelas duas bailarinas/coristas) fizeram suspirar por momentos como a tocante canção de amor Sabali, desejando que pudesse ser apenas aquele instante em que Mariam canta belissimamente para Amadou e lhe acaricia repetidamente o ombro sem isto ser depois transformado em rock de estádio.

Baloji, mestre de palco
Na noite seguinte, sexta-feira, Sines teve em Baloji a grande figura. Rapper crescido na Bélgica, o músico congolês tem uma apurada noção de espectáculo e não hesita em usá-la em cada segundo do seu concerto. Surgido com a elegância imaculada que conhecemos ao soulman norte-americano Aloe Blacc, Baloji faz-se acompanhar por uma banda que puxa quase sempre para lados de soul e funk, à excepção de um guitarrista que empurra as canções para os lados do Congo.
É sobre essa dinâmica que o cantor espalha o rap, num processo de procura da sua identidade em tempo real. E aquilo que lhe falta em termos de definição clara de personalidade artística — ainda algo à deriva entre as suas referências de adolescente na Bélgica e a descoberta da música do seu país na idade adulta, e que não resulta, por enquanto, num reportório que deslumbre —, o músico disfarça primorosamente com a facilidade em conquistar o público.
Fá-lo de duas formas: através de uma música de exaltação e uma contagiante energia em palco, enfeitada de saltos, pontapés no ar, descidas até à multidão e esperneando no chão enquanto canta no limite, engrena depois um discurso político que o coloca de imediato no mesmo lado da barricada que a assistência.
Baloji começa por frisar que o álbum Kinshasa Succursale é motivado pelo 50.º aniversário da independência da República Democrática do Congo, mas também de muitos outros países africanos, que vai citando enquanto atira farpas às ditaduras e às guerras civis com que se viram/vêem manietados. E saca de um exemplo, para mostrar que não fala de cor: o caso da Costa do Marfim, em 2010, com dois presidentes a reclamar a vitória eleitoral e a proceder à tomada de posse.
As disputas de poder e a crítica à actuação do FMI em Portugal lembrariam ainda que, a alguns metros dali, à entrada do Castelo do Sines, o festival dá as boas-vindas ao público com uma citação de Nelson Mandela: “Let freedom reign” (Deixem reinar a liberdade).
Mas se Baloji grita ainda, no meio do entusiasmo, “Isto não é música do mundo, é a nossa música”, antes os Lo’Jo tinham feito quase a apologia contrária. Liderado pela voz e pelo piano de Denis Léan — facilmente imaginável como um Leonard Cohen em língua francesa —, o grupo seria um descendente directo da chanson clássica, não fosse a instrumentação que afasta de França as canções que Léan vai desfiando e as distribui pelo Magrebe, pelo Médio Oriente ou pela Jamaica. Para cada canção, há mesmo um mundo de opções.
Antes, o palco fora tomado por uma espantosa viagem a cargo dos Barbez, colectivo norte-americano ligado à editora de John Zorn, numa apresentação de temas inspirados por antigas melodias das comunidades judaicas de Roma, evocando igualmente a ocupação nazi da cidade e o cinema neorrealista italiano, numa música extremamente bela e intensa sem ser explosiva. Terminariam com o tema-tocha da Resistência Italiana durante a Segunda Guerra, Bella Ciao — aqui dedicado aos polícias, no geral e no concreto de cada um.
Numa jornada começada ao fim da tarde, com Celina da Piedade a levantar o público do chão valendo-se do seu acordeão enamorado pelas danças tradicionais europeias e a deixar a melodia de Pêra Verde a ecoar pelo recinto durante horas, o encerramento ficaria por conta do ska balcânico desembestado do Dubioza Kollektive, já com o Castelo de portas abertas. A comunhão entre povos e culturas regressa ao Castelo esta quarta-feira com o gnawa de Hassan El Gadiri, transferindo-se segunda e terça para o Centro de Artes, com concertos de Jon Luz ou Aline Frazão.

 

Sugerir correcção
Comentar