Ana Borralho e João Galante põem cem cariocas em cena no Atlas do Rio

Depois de uma instalação-performance, expectativa para a criação em palco da dupla portuguesa, hoje no festival Panorama

Eles avançam no palco um a um, adaptando a lenga-lenga do elefante ("Se um elefante incomoda muita gente...") ao seu estado de emprego (ou desemprego). Em cada lugar do mundo é diferente, porque em cada lugar Ana Borralho e João Galante, os criadores deste Atlas, trabalham com cem voluntários locais.

Esta noite no Rio de Janeiro, por exemplo, uma mulher vai avançar e dizer: "Se uma apresentadora do programa Sexo e Amor que já foi prostituta, camelô, cabeleireira, actriz de filme pornô e que daqui a uma semana vai estrear Tchekov no Teatro do Leblon incomoda muita gente..." E o coro dos que já tiverem avançado no palco antes dela, por exemplo, 57, responde: "57 apresentadoras do programa Sexo e Amor que já foram prostitutas, camelôs, cabeleireiras, actrizes de filme pornô e que daqui a uma semana vão estrear Tchekov no Teatro do Leblon incomodam muito mais."

E haverá um "atendente de telemarketing que também é passista de escola de samba". Uma "actriz negra de 40 anos com três empregos". Um "actor nordestino, migrante e gay". Um "palhaço indignado com as ruas que se transformaram em abrigo de uma infância abandonada e violentada". Um "publicitário frustrado porque desde que se formou não consegue actuar na sua área". Um "ex-militar, estagiário de publicidade na Petrobrás". Um "contrapublicitário que quer falar como a publicidade cria necessidades e frustrações".

Cada um é o que diz, voluntários de fora da dança contemporânea, recrutados pela produção do festival Panorama num processo que antecedeu a chegada ao Rio, dia 27, da dupla portuguesa Ana Borralho e João Galante.

A versão carioca de Atlas vai ser vista em duas sessões, hoje e amanhã, no Teatro Carlos Gomes, centro da cidade, depois de ter sido estreada em Lisboa, e apresentada na Finlândia e em Itália.

"A peça é sempre adaptada ao contexto", resume Ana Borralho antes do ensaio com voluntários novos. "Aqui está a ser semelhante a Itália, mais caótico. Em Helsínquia foi tudo organizado, as 100 pessoas sempre. Aqui, ontem tínhamos 20 pessoas novas no ensaio. E há atrasos."

Além das idiossincrasias locais, os problemas do país podem variar e isso é integrado na partitura, refeita a cada vez. Por exemplo, em Portugal o coro dizia o número total de portugueses desempregados. Na Finlândia, passou a dizer o número de finlandeses que tomam antidepressivos. "No Brasil será o número de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza", diz Ana Borralho. "Se 60 moradores de rua, desempregados, que passam fome e que vivem abaixo da linha da pobreza incomodam muita gente, 16 milhões, 370 mil pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza incomodam muito mais."

O primeiro a avançar em palco é um actor. O centésimo geralmente é uma criança, mas nisto o Rio também será diferente. "Houve problemas com as autorizações, por causa da lei do trabalho infantil, então será a pessoa mais velha do grupo, uma senhora com 91 anos."

Ana Borralho e João Galante tiveram apenas uma semana para adaptar Atlas, porque nos primeiros cinco dias da estadia carioca estiveram a trabalhar na adaptação de World of Interiors, instalação-performance em que várias pessoas deitadas recitam um texto do dramaturgo argentino Rodrigo Garcia. O Panorama convidou-os a experimentar duas mudanças: em vez de 20 pessoas serem 50 e em vez de interior ser exterior.

Assim, no fim-de-semana passado, a dupla portuguesa apresentou World of Interiors no jardim aos pés do palácio do Parque Lage. Quem andasse pelo parque não podia ignorar aqueles 50 corpos deitados em cangas, os panos de praia cariocas, de auscultadores no ouvido, olhos fechados, recitando o texto. E gente de todas as idades debruçava-se sobre eles para escutar. "Por um lado perde-se a intimidade, o sussurro daquelas vozes todas", avalia Ana Borralho. "Mas passa a haver um lado de paraíso perdido e de um público anónimo que se aproxima."

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