O Acordo Ortográfico e a tradução para português

Foto

O meu trabalho consiste na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. Vai desde a simples maca de exames utilizada nos consultórios médicos, ao ventilador de cuidados intensivos ou desfibrilador cardíaco, de cujo correcto funcionamento e utilização dependem as vidas de tantos doentes por este país fora. Dependendo de o fabricante ser Europeu ou Americano, as traduções são produzidas – em geral – para Português de Portugal (Pt-Pt) ou do Brasil (Pt-Br), respectivamente. Por conseguinte, quando importamos da Europa, geralmente, repito, não há problema de maior; contudo, ao comprar equipamento nos EUA e com a globalização, consequentes fusões de companhias e migração de quadros pelo mundo inteiro, a situação complicou-se.

O que me chega às mãos está muitas vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na tradução do manual de um ventilador, lê-se:

"Usar o ventilador de maneira diferente como foi instruída pode causar danos ao digitalizar de RM."

Uma tradução correcta do original em Inglês poderia ser assim:

"A utilização do ventilador de maneira diferente da que foi indicada nas instruções, pode causar danos ao aparelho de RM (ressonância magnética)."

Trata-se da versão em Pt-Br e, tanto neste exemplo como nos restantes que me chegam às mãos, chama-se "vazamento" a fuga, "cabo de força" a cabo de alimentação, "tela" a ecrã, "plugue" a ficha, "Jack" a tomada, "leiaute" a disposição, "acurácia" a precisão, diz-se que a impressora "está aquecendo", que "você tem de acessar isso" (aceder) ou "você deve apertar aquilo" (pressionar), os verbos reflexivos são conjugados ao contrário ("isso se faz assim" em vez de "isso faz-se assim"), etc.

O manual de um dispositivo de suporte de vida chega a ter 300-400 páginas e o deste exemplo era uma tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi corrigida (1) quando o fabricante mudou de distribuidor e (2) porque, depois de muita argumentação por parte do distribuidor, acabaram por concordar em produzir uma versão em Pt-pt.

Peço-vos que voltem a ler os exemplos apresentados. Não há uma só instância de diferença ortográfica. Isto só prova a futilidade do esforço daquilo a que se chama "uniformização ortográfica". A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi estão escritos assim e, provavelmente, no Brasil até são textos compreensíveis, não sei, nem discuto. Mas em Portugal não. As traduções utilizadas em Portugal têm forçosamente que ser feitas para Pt-Pt, para que se possam cumprir critérios que tenham em atenção, embora não se limitem a clareza, correcção e boa redacção.Contudo, há uma batalha contínua para que os dispositivos comercializados sejam acompanhados de instruções adequadas. A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções Brasileiras em Portugal. Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt-Br ou (2) temos que reduzir custos, por isso há que anular uma das versões em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt-Pt. Ponto final. Contra-argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis para textos que se destinam a profissionais clínicos, que os erros podem provocar acidentes de proporções mais ou menos sérias, é por regra inútil. Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os médicos, enfermeiros e muitos outros profissionais portugueses ligados à medicina podem usufruir do privilégio de ler as instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de fácil e natural compreensão. Ou seja, aquilo que devia ser um direito, que está previsto numa Directiva Europeia, que por sua vez foi transferida para a lei Portuguesa, é no fundo, um privilégio. Quase um favor.

É, portanto, com profunda consternação que vemos o Governo português, que devia defender os nossos interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, argumentando que a unificação ortográfica (inexistente na realidade) irá resolver todas as diferenças entre ambos os registos do Português.

O Acordo Ortográfico, ao criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente nefasta para o Português-padrão, tem um resultado terrível para a tradução, porque retira trabalho aos tradutores portugueses e enche o mercado português de instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são.

Contudo, ainda é possível inverter este erro colossal, assinando a Iniciativa Legislativa de Cidadãos. Para saber como assinar e ficar a saber mais pormenores, por favor, visite o portal http://ilcao.cedilha.net/.

Sugerir correcção