Entre a memória e o arrependimento da militância revolucionária

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Baudelaire quis falar de terrorismo "de modo objectivo, humano" a partir de uma abordagem "impossível": duas perspectivas interiores dr

O francês Éric Baudelaire conta a história de dois revolucionários arrastados pela violência dos anos 1970. O seu filme passa hoje no DocLisboa

"Como é que se fala de terrorismo de modo documental, objectivo, humano?" O artista multimedia francês Éric Baudelaire tem noção da dificuldade. "Não queria fazer o habitual - entrevistar académicos e jornalistas, usar imagens de arquivo. Arrisquei uma abordagem quase impossível: contar a história a partir de duas perspectivas interiores, pessoais."

Baudelaire explica assim ao PÚBLICO o projecto do filme que repete hoje (Culturgest, 18h45) na competição internacional do DocLisboa. O título, The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi and 27 Years Without Images, esconde um objecto acessível e tocante, construído sobre testemunhos pessoais do grupo revolucionário Exército Vermelho Japonês, liderado pela militante exilada Fusako Shigenobu e responsável por várias acções terroristas na década de 1970. Baudelaire não esconde que o diálogo que The Anabasis... estabelece com os actuais movimentos de indignação globais não fazia parte do programa do filme. "Quando comecei a trabalhar, a Primavera Árabe ainda não tinha acontecido. Não havia nada visível no horizonte, mas sentia-se qualquer coisa no ar. Era uma questão de saber quando é que as brasas iam atear um novo fogo."

E revê em alguns dos movimentos de hoje traços da violência militante do passado. "Vi uma entrevista com jovens do movimento Occupy Oakland, que sofreu uma repressão brutal por parte da polícia. Eles diziam, "viemos pacatamente sentar-nos aqui, a polícia vem bater-nos com bastões... A não-violência está muito bem, mas por que haveríamos de deixar à polícia o monopólio da violência?" Não digo que estejamos à beira de ver um regresso da violência clandestina. Mas o que estes miúdos dizem ressoa com o que aconteceu no Japão em 1968-69."

As consequências da violência clandestina vêm ao de cima nas histórias de Masao Adachi e May Shigenobu, a que Éric Baudelaire dá voz (e apenas voz) em The Anabasis..., que começou a ganhar vida durante uma residência artística no Japão. Adachi, cineasta japonês que trabalhou com Nagisa Oshima ou Koji Wakamatsu, abandonou a sua carreira para se juntar ao grupo como porta-voz; May Shigenobu, filha de Fusako, viveu 27 anos na clandestinidade. "Senti-me muito tocado pela história de May. Entrevistei-a em 2008, e depois lutei muito tempo com o modo como a queria contar. Sentia que havia ali algo que resistia a uma narração normal, uma vertigem que apenas podia ser revelada por contraste com outra coisa."

Daí que a aposta de Baudelaire em deixar que sejam Adachi e May a contar a história com as suas próprias palavras abra pistas inexploradas e inesperadas. Por um lado, o filme é quase inteiramente construído com imagens rodadas hoje. "Era muito importante o facto de não haver imagens da May durante 27 anos. Quando fiz as contas e compreendi que o próprio Masao também tinha perdido [num bombardeamento] 27 anos de imagens que filmara, percebi que estava ali todo o filme: era preciso jogar com as imagens que faltam, as razões pelas quais elas faltam e o sentido que essa falta constrói." A memória é assim um dos temas centrais do filme - como diz Baudelaire, "quando falamos de memória, falamos também de falsas memórias, e de "vazios" de memória, onde se inserem as ficções que contamos a nós próprios".

Por outro lado, sente-se um lamento pelo tempo e pela vida perdidos que as vozes off de May e Adachi revelam sem nunca expressar directamente. "O que é bonito é que, se eles estivessem os dois aqui à sua frente e lhes fizesse essa pergunta, ambos negariam arrepender-se do que quer que fosse", diz-nos o realizador. "Mas, apesar de tudo, esses arrependimentos vêm ao de cima. E isso faz parte do que acho apaixonante: duas personagens que recusam a noção de arrependimento mas fazem um filme que transborda de remorso."

O resultado é um filme que se abre ao espectador. "Gosto muito das obras nas quais a resposta depende do que o espectador quiser ver nelas. The Anabasis... não quer impor uma perspectiva, mas dar a pensar, abrir um espaço no qual se podem debater estas questões."

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