Brasil num Outono/Inverno português

Foto
Denise Stutz é uma das figuras mais importantes da dança brasileira; chega ao Materiais Diversos com 3 Solos em 1 Tempo, poderoso material autobiográfico MARTHA AZPAREN

A partir de hoje, o Festival Materiais Diversos faz desfilar uma embaixada da dança brasileira, apontando para uma das direcções desta rentrée, programada à sombra do Ano do Brasil em Portugal.

Como é que eu posso me aproximar? Como posso me relacionar? Eu e você? Nós. Você. Você, você e eu aqui, nesse espaço, agora. Você. Eu. Eu. Eu. Você, você. Eu. Vocês, vocês, eu, vocês. Eu. Eu. Eu e você. Eu quero discutir a nossa relação."

São assim as primeiras frases de 3 Solos em 1 Tempo, de Denise Stutz. É um dos nomes mais importantes da dança brasileira e estará por cá no Festival Materiais Diversos, que decorre de hoje até dia 29 em Minde e Alcanena. Denise tem 56 anos e esta peça (dia 23, às 18h, no Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro de Minde) é a sua vida. É uma vida que pode ser contada através da história da dança brasileira. Quarenta anos depois de ter começado, 25 anos depois de ter deixado o Grupo Corpo, que fundara em 1975 e que entretanto se tornou na mais internacional das companhias brasileiras, a história de Denise é "uma história de movimento". "Acho que escolhi ficar em movimento", diz ao Ípsilon, descrevendo uma dança que herdou, tal como a própria Denise, a memória dos avós russos e do pai americano - a memória de gente que não falava português quando chegou ao Brasil e do que isso significou, um permanente começar.

"A minha política é a de me deslocar da minha zona de conforto para entender, além do país que vivo, o tempo que vivo", conta Denise. É o tempo do Brasil catapultado para as páginas dos jornais, do Brasil que tantos esperam como o país do milagre, da recuperação económica, do crescimento feito sob o estímulo de eventos internacionais como os Jogos Olímpicos e o Mundial de Futebol. Perguntamos-lhe se isso não a assusta e se, a cada apresentação, a sua obra, tão livre porque tão próxima do seu corpo, da sua intimidade, não corre o risco de ser lida como uma metáfora da ascensão do Brasil. Desarmante, Denise responde: "O meu solo é um relato sobre a minha vida na dança. Sobre o processo de transformação que vivi durante estes 40 anos. Estou na dança porque é a minha maneira de me colocar em relação ao outro. A dança é a minha vida. Pensando agora: se a minha história fosse de resistência em relação à própria dança brasileira, o meu percurso teria sido outro."

Será no Materiais Diversos que o percurso de Denise Stutz a solo se cruzará pela primeira vez com o público português. Lado a lado com ela estará a dança com sotaque de Christian Duarte (The Hot One Hundred Choreographers), Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira (Baseado em Fatos Reais) e Ana Rita Teodoro (Melte), assim como os portugueses Sofia Dias e Vitor Roriz (Fora de qualquer presente), Marlene Monteiro Freitas (Paraíso - Colecção Privada, em estreia mundial hoje) e a dupla Ana Borralho e João Galante (Atlas).

Através desta embaixada, o Festival Materiais Diversos quer mostrar a singularidade da dança brasileira "sem a preocupação de dizer que a dança brasileira é assim", diz Tiago Guedes, o coreógrafo que é também director artístico do festival. Como lembrava a coreógrafa Lia Rodrigues quando esteve em Lisboa para apresentar Piracema, "o Brasil são vários Brasis, [e] a sua dança também". O programa desta edição contempla ainda a presença da companhia de teatro Foguetes Maravilha, de Alex Cassal e Felipe Rocha, com Ninguém Falou que Seria Fácil (de 20 a 22 no Maria Matos, em Lisboa; dia 28 em Alcanena). O colectivo, que se tornou numa sensação depois de ter ganho vários prémios, na temporada passada, com uma peça que revolve as noções de família e indivíduo, passa ainda, dias 25 e 26, pelo espaço Alkantara, em Lisboa, com 2Histórias, micro-narrativas em torno de objectos e memórias, em co-produção com a portuguesa Mundo Perfeito, de Tiago Rodrigues. O Materiais Diversos completa a sua programação brasileira com Dulce (domingo, às 18h, no CAORG), colaboração entre os brasileiros Michel Blois e Thiare Maia e os portugueses Flávia Gusmão e Nuno Gil (de 20 a 22 também no São Luiz, em Lisboa).

Uma certa dança

O expressivo contingente de programação brasileira do Materiais Diversos é na verdade o pontapé de saída, no domínio das artes performativas, do Ano do Brasil em Portugal. Nos próximos meses, o Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII), em Lisboa (de 1 de Novembro a 16 de Dezembro), e o Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto (de 9 Outubro a 11 de Novembro) mostrarão a pluralidade de um teatro que desconhecemos quase totalmente. O D. Maria abre com a mítica Bibi Ferreira (1 a 3 Novembro), cantora, actriz e tudo o mais que uma diva pode ser, e mostra, entre outros, Doze Homens e uma Sentença (5 e 6 Dezembro), dirigido por Eduardo Tolentino, um dos mais importantes encenadores paulistas, a partir de Twelve Angry Man, de Reginald Rose, que foi filme americano. Mais adiante, em Novembro, divide com o TNSJ Cartas de Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade, de Sura Berditchevsky (TNSJ, 31 Outubro e 1 Novembro; TNDMII, 7 e 8 de Novembro), Hell, de Hector Babenco (TNSJ, 3 e 4; TNDMII, 10 e 11), e Missa dos Quilombos (TNSJ, 8 a 11; TNDMII, 15 a 18), da companhia Ensaio Aberto, que problematiza a relação entre os escravos e os colonos. Em 2013, será a vez de o São Luiz ter a sua embaixada, mas a programação ainda não foi anunciada.

Uma troca que se faz no âmbito do Ano do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil sem que, contudo, se reflicta sobre se Portugal ainda interessa ao Brasil como porta de entrada na Europa. "Sempre buscamos proximidades e interacção com aquilo que desperta a nossa curiosidade, por familiaridade ou pela incompreensível distinção", diz Christian Duarte. Portugal olha com o Brasil com nostalgia, mas o Brasil, na sua recém-conquistada independência social, política e económica já não procura Portugal - será assim, tal e qual, na dança?

Talvez continue a ser "mais fácil estar próximo de artistas europeus do que de brasileiros ou da América do Sul", dizem Ana Catarina Vieira e Ângelo Madureira. Mesmo que se viva numa das capitais do mundo, São Paulo. A peça que os dois trazem ao Materiais Diversos, Baseado em Fatos Reais, revisita o percurso que fizeram nos últimos anos, com peças que cruzam a tradição e a contemporaneidade, olhando para as "zonas cinzentas". A dupla partiu da memória fixada em 1800 fotografias para, com o corpo de outros bailarinos, "continuar a perguntar como se conta uma história". Uma história e a História. Não de um país, mas de vários países.

Olhos japoneses, sotaque italiano

A peça de Christian Duarte The Hot One Hundred Choreographers (amanhã, às 21h30, no CAORG) é exactamente sobre o modo como o corpo traduz o que vai vendo e cria, para si mesmo e depois para o corpo dos outros, um novo quadro de referências. "Acho que todo o país onde a cultura acontece está sujeito a um volume intenso de referências, e não é diferente no Brasil. Aliás, da maneira como utilizamos a Internet actualmente para nos aproximarmos de toda a produção em toda a parte, fica difícil precisar como se dão as nossas resiliências e subjectivações", diz o coreógrafo.

A sua peça entra em diálogo com a obra de Denise Stutz pelo modo como permite olhar para a história da dança brasileira como uma matéria em permanente diálogo com a que se fez no resto do mundo. Christian Duarte acredita que a dança pode constituir-se enquanto entidade autónoma no interior das transformações políticas e sociais. Mas isso não permite, alerta, que daqui se possa partir para uma leitura unívoca. "Acho que se pode, com generosidade, falar de uma certa dança contemporânea europeia, assim como se pode falar de uma certa dança contemporânea brasileira. Mas não dá para achar que isso representa o todo que acontece nestas realidades", argumenta.

Christian Duarte é um dos melhores representantes da actual cena contemporânea brasileira e isso significa uma pressão maior, num país sobre o qual se lançam expectativas mais aceleradas do que a velocidade a que as transformações sociais conseguem responder. E é de poder que se fala quando se fala do novo Brasil. "Estamos nesse processo apressado de dominar o mercado", intervém a propósito Marcelo Evelin, que em Dezembro passou por Lisboa com Matadouro, segunda parte de uma trilogia sobre as guerras no Brasil. Evelin divide o seu trabalho entre o Piauí, no Maranhão, e Amesterdão, na Holanda, e foi um dos coreógrafos convidados para a embaixada brasileira que no último trimestre de 2011 ocupou a Bélgica, quando o Brasil foi o país convidado da Europália - justamente o evento que, em 1991, cunhou a nova dança portuguesa. "Na pressa de querer dominar", diz ainda, "as pessoas esquecem que quem domina acaba sempre perdendo". E que o melhor do Brasil é ser vários Brasis. "Estamos a lidar com uma sociedade híbrida, onde todo o mundo tem lugar, estamos a começar a entender isso na prática, no social e no cultural também".

Experimentado coreógrafo, observador atento das expectativas de uma e de outra margem do Atlântico, olha para o Brasil de um modo plural. E lança um problema para cima da mesa: "Como será quando nos Jogos Olímpicos tiver de haver uma coreografia que mostre o que é o Brasil? Não acho que sejamos necessariamente diferentes de ninguém. Há uma mistura grande de processos, raças e lugares. A identidade brasileira é livre e estamos a começar a ter uma abertura para que as coisas sejam mais do que uma só." Regressa ao exemplo dos Jogos Olímpicos para lembrar o que aconteceu quando estes terminaram em Londres e a bandeira olímpica foi entregue ao Brasil ao som de Carlinhos Brown, nas curvas de uma sambista. "É preciso que o movimento de transformação seja mais transversal, que envolva os trabalhadores e os emigrantes, que não seja só a imagem da Carmen Miranda, da baiana, do samba, do futebol e do café. Muitas vezes a identidade é sustentada em clichés. E a dança pode ajudar [a ultrapassar isso], muito mais do que o teatro". "Por já estar no corpo", acredita, a dança parte "desse lugar hibrido que não é branco, não é negro, não é pardo, que tem olhos japoneses e sotaque italiano".

Sugerir correcção