Hofesh Shechter já não atira a matar

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MANUEL ROBERTO

Under a Rock, que o coreógrafo israelita criou para a Companhia Instável, tem estreia mundial hoje em Guimarães

Hofesh Shechter ainda se lembra de atirar a matar - e não estamos a falar dos anos do serviço militar obrigatório em Israel, noutra vida, a que teve antes de vir para Londres e de ali se transformar no "único coreógrafo da cidade que consegue carregar uma Uzi de olhos vendados", como há meses escreveu o Observer.

Mas passaram-se seis anos desde Uprising, a peça em que, depois de se fechar numa sala com mais seis bailarinos, todos homens, o coreógrafo israelita (Jerusalém, 1975) previa um motim, e dois desde Political Mother, em que a psicose de guerra a que ele durante anos chamou casa e a raiva por ter visto a mãe ir à sua vidinha quando tinha dois anos lhe rebentaram nas mãos - e nem todos os espectadores escaparam ilesos.

O mundo cá fora não se tornou mais habitável entretanto, mas o mundo cá fora não é a cabeça de Hofesh Shechter. "Todas as minhas peças dependem do estado em que está a minha vida no momento em que coreografo. E talvez agora eu esteja mais optimista", diz-nos ao telefone, em Londres, de onde vai acompanhando à distância os ensaios de Under a rock, a peça que compôs a convite da Companhia Instável e que terá a sua estreia mundial esta noite na Black Box da Fábrica ASA, em Guimarães.

O optimismo de Hofesh Shechter significa "mais sentido de humor, mais tempo, mais paciência" do que em peças de iniciação como Fragments (2003) ou Cult (2004), que também integram o programa desta noite. Há momentos em que Under a rock também se amotina, quando o som e a fúria de um clã - os bailarinos Cindy Emelie, Danilo Moroni, Erik Lobelius, Marco Ferreira, Liliana Garcia, Samon Presland e São Castro, escolhidos por audição em Fevereiro - assumem o tamanho de uma banda sonora paralela (as palmas, o headbanging, os punhos que batem com força no peito), e disposta a tudo. Mas depois há a espera, o suspense, os blackouts, a tensão dos momentos em que, como nada acontece, tudo pode acontecer - Hofesh Shechter está mais lento, e possivelmente menos mortal. "Estou mais paciente no modo como coreografo. Já não coreografo para matar, para fazer explodir. Sinto-me - isto também é novo - a olhar para aquele grupo de pessoas e a perdoá-las", admite.

Nesse sentido, Shelters - o título genérico do programa desta noite - é uma viagem. Do Hofesh Shechter de Fragments, a primeira coisa que coreografou na vida (e que foi primeiro prémio no concurso coreográfico Sergei Diaghilev), ao Hofesh Shechter de Under a rock, criada aqui e agora por encomenda da Companhia Instável, passando pelo Hofesh Shechter de Cult, peça para seis intérpretes em que o coreógrafo já se atirava à nossa dependência quase supersticiosa de rituais (questão de sobrevivência: rotina ou morte), tema que desde então faz parte do seu programa.

É uma viagem também para ele, que se vê de repente na mesma sala com fantasmas passados: "Remontei uma destas peças há três anos e na altura não me soube nada bem: pareceu-me muito datada, achei que não era suficientemente boa. Desta vez voltei a ficar nervoso, mas subitamente os ensaios devolveram-me a confiança no meu trabalho anterior. E agora sabe-me lindamente olhar para aquilo".

Aquilo, no caso de Fragments, é tudo o que Hofesh Shechter tinha quando chegou a Londres em 2002: "a vida de um casal, e a luta de duas pessoas para sobreviverem dentro dela". Cult dá o salto para o assunto de que o coreógrafo se tem ocupado maioritariamente, o grupo e as suas dinâmicas, que Under a rock retoma, figurando "uma tribo que pode muito bem estar aqui há milhares de anos" - e que há milhares de anos cumpre maquinalmente os pequenos protocolos que definem a sua posição no mundo.

O ritmo é a razão

Tal como em todas as suas outras peças, o próprio Hofesh Shechter compôs a banda sonora - um mantra repetitivo e estupidamente mobilizador (diz-nos para ir, e vamos). As peças dele, na verdade, não passam sem isso: há dois anos, quando Uprising / In Your Rooms passou pelo Centro Cultural de Belém, disse-nos que a música dos seus espectáculos "está sempre muito alta" porque quer que, "enquanto estão ali, as pessoas estejam fora de si". Pensar é a última coisa que o coreógrafo israelita quer que os espectadores façam enquanto estão debaixo dele - como as personagens de Under a rock, "que seguem um ritmo mas já não sabem por que razão". Sendo que o ritmo, no fundo, é a razão: "Temos uma paixão pela segurança, um instinto violento de autoprotecção - o que as minhas peças têm em comum é essa procura de um lugar onde nos possamos esconder do barulho, do pó e da confusão do mundo lá fora".

Não é isso que Hofesh Shechter está a fazer agora? Vejamos bem: uma discreta estreia em Guimarães com uma companhia que se desintegrará quando terminar a vida da peça (a Companhia Instável é um estrutura que se faz e se desfaz ao ritmo de uma produção por ano, sempre com um coreógrafo convidado), depois do barulho, do pó e da confusão do seu último trabalho, Survivor, uma aventura hiper-mediatizada com o artista plástico Antony Gormley... "Fiquei muito excitado com a ideia de trabalhar com uma companhia em que os bailarinos são escolhidos pelo coreógrafo. Normalmente, quando há uma encomenda, o grupo já esta formado e se não gostas dele, azar. Aqui o grupo existe em função do projecto. Isso é único e é brilhante", afirma. Em Londres, onde convive há anos com o peso de ter sido chamado "o maior acontecimento da dança britânica desde o início do milénio", Hofesh Shechter sabe que muita gente está à espera do dia em que voltará a atirar a matar. Tem a calma de um sniper: não podia estar menos preocupado com isso.

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