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Fernando Lopes, o doce visionário

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Fernando Lopes na rodagem de 98 Octanas, em 2005 LIONEL BALTEIRO/aRQUIVO

Generoso, dedicado, um sábio. Fernando Lopes, uma referência do Cinema Novo português, é lembrado por todos pelos filmes que deixa e que revelam o culto da amizade, o profundo saber e a felicidade da vida

"Esteve sempre lúcido. No fim, apagou-se devagarinho. Foi uma coisa muito suave", contou ontem Pedro Lopes, o filho mais velho do realizador Fernando Lopes, fundador do Cinema Novo Português, que morreu ontem aos 76 anos, no hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, com um cancro.

O seu corpo está hoje no Palácio Galveias, entre as 18h e as 22h, e amanhã será cremado. "Estava a par de tudo", diz o filho, e este Verão, já doente há um ano, casou novamente com Maria João Seixas, directora da Cinemateca Portuguesa.

Quem sabia das dificuldades de saúde que o afligiram nos últimos tempos só podia imaginar quão duro deveria ser, para este homem de "sandálias aladas", ver-se manietado e "incerto".

"O Fernando só fica certo em movimento", escreveu o seu amigo e também realizador Alberto Seixas Santos, há 20 anos, num texto que o comparava a um "Mercúrio lisboeta, deus mensageiro de sandálias aladas, voando de mesa em mesa, de grupo em grupo, de pai em pai".

Seixas Santos descrevia o Fernando Lopes de todos os dias, e quem o conhecesse, ainda que só um bocadinho, percebe a justeza, até pela maneira como Lopes viveu dentro do cinema português, em cujo tortuoso meandro talvez nunca tenha havido pessoa tão estimada, tão amada, sem excepção, em todas as "mesas" e todos os "grupos".

O encenador e realizador Jorge Silva Melo, que conheceu Fernando Lopes aos 15 anos e quem o convidou para fazer o primeiro filme, recorda "o entusiasta que espalhava imensa ternura por todos". "Ficava genuinamente feliz com as conquistas dos outros. Não se desanimava por os seus filmes não terem êxito." Para Bruno de Almeida, muito mais novo, o cinema do "avô Lopes", como lhe chamava, "parecia-se com a vida, a dele. E partilhava-a." Num depoimento escrito ao PÚBLICO, o realizador fala da honestidade com que Lopes filmou ao longo de 50 anos, "reveladora da sua generosidade". "Qualquer pequena situação vista pelos olhos dele dava-nos infinitas possibilidades de filmes. Quando lhe mostrava os meus filmes na fase de montagem, ele invariavelmente dizia com um minimalismo assustador: "Tira aquele plano e funciona." Tinha sempre razão." Se certamente fez por si, se calhar fez ainda mais pelos outros.

O título do seu último filme, Em Câmara Lenta, parecia de uma auto-ironia cruel, mas em caso algum involuntária - era um filme de despedida, que com sorte podia não ser a despedida, mas não deixava por isso de o ser. Rui Cardoso Martins, que teve a "triste honra de ser a última pessoa a escrever para ele", como conta, lembra uma frase, "que se aplica tão bem ao dia de hoje e ao Fernando: "Hoje vou à procura de um peixe que anda atrás de mim e, ou eu o apanho, ou ele me apanha a mim". É um dia triste, perdemos um cineasta que conhece tudo".

É disso que fala Alexandra Lencastre, que começou na televisão pela mão de Fernando Lopes, então na RTP, que convidou a actriz para integrar o elenco da série Rua Sésamo nos anos 1980: "O Fernando era um ser muito especial que sabia de tudo, e muito bem de tudo. Sabia profundamente sobre culturas exóticas e de imagens que mais ninguém sabia. Muitas vezes o encontrei a reflectir sobre como ia resolver o próximo plano, porque não estava contente com o que tinha pensado."

E isso aplicava-se ao modo como Lopes trabalhava com os actores, "que não eram, para ele, marionetas, eram cúmplices", diz Rui Morrisson, seu último alter-ego, no filme Em Câmara Lenta. Morrisson cedia finalmente às forças das profundezas que o atraíam, magneticamente, para o abismo, e deixava-se ir, como num abraço, para o fundo do mar. Sobrava a pele, a carapaça do homem-rã. Acabava-se o vai e vem; o plano do fato do homem-rã pendurado na parede em forma de cruz, como num altar, fica, agora pode-se dizer isto, como o plano do olho de João César Monteiro no final de Vai e Vem.

Na obra de Lopes há alter-egos e doppelgangers; Morrisson foi alter-ego, Belarmino Fragoso e Claude Brasseur foram doppelgangers.

Rogério Samora, que com ele fez quatro filmes, diz que "reconhecia isso nos pedidos que [lhe] fazia de gestos e frases recorrentes [onde se podia ver Lopes]". Tinha tudo a ver com o movimento, que estava lá desde o princípio.

"O que eu queria ser era o Minnelli ou o Jacques Demy" e fazer comédias musicais. Silva Melo fala de um cinema que "tinha a liberdade e a delicadeza das composições de jazz". Ensaiou essa leveza (em bocadinhos de Nós Por Cá Todos Bem, na Crónica dos Bons Malandros, nestes últimos filmes, Os Sorrisos do Destino e Em Câmara Lenta), e como se usasse um código salpicou o mesmo bolero dos Panchos, Sabor a Mi, por inúmeros filmes. Mas tudo arrancou com os bailados de Belarmino Fragoso, o pugilista que podia ter sido mas não chegou bem a ser. Belarmino, claro, a pedrada no charco que, com os Verdes Anos de Paulo Rocha, instaurou a modernidade do cinema português. "É famosa a história em que depois da estreia de Verdes Anosforam para o laboratório cortar 3 minutos no positivo, porque o Fernando achava que ainda havia coisas para acertar", conta Silva Melo.

A Lisboa mortiça de 1960, presa dentro do seu preto e branco de cortar à faca, um primeiro olhar de Lopes sobre as forças atávicas que suprimem o rasgo, amarram o gesto, impelem a uma espécie de amor, quase carnal, pelo abismo. "Belarmino podia ser eu, podia ser Portugal." Miguel Gomes concorda: "O documentário é um retrato de uma pessoa e ao mesmo tempo de uma sociedade." Belarmino colou-se-lhe à pele, doppelganger que ele abraçou; mas Belarmino, o filme, também, para o bem e para o mal, como se a sua grande sombra tapasse uma parte dos seus outros filmes, como se o instinto fosse o de procurar Belarmino nesses outros filmes.

Cineasta de Lisboa

Nos anos 1990, num dos seus grandes, grandes filmes (O Fio do Horizonte, segundo Tabucchi, que também morreu recentemente), Lopes enfrentou essa sombra: como não ver naquela Lisboa cabalística e abissal, e naquele outro "duplo", Claude Brasseur, "gémeo" de Lopes ("mas eu sou tu e tu és eu!", contava ele da exclamação de Brasseur quando se conheceram), um eco, críptico e elíptico, dessa outra Lisboa, que vinha dos subterrâneos e para os subterrâneos conduzia?

As "sandálias aladas" de Lopes não o guiaram apenas entre géneros e filmes muito diferentes. Fizeram-no saltitar também entre a cidade e campo. "Cineasta de Lisboa", e marcante enquanto tal, mas também um observador da ruralidade portuguesa (a sua origem: vinha de Alvaiázere, onde nasceu em 1935). Uma Abelha na Chuva, outro dos seus títulos incontestáveis, abordagem do neo-realismo literário (a partir de Carlos de Oliveira) sob o signo do expressionismo cinematográfico ("Eu pensava em Murnau", explicou); Nós Por Cá Todos Bem, e o seu par 20 anos mais tarde, Se Deus Quiser, duas incursões no documentário cheias de partidas e alçapões; Matar Saudades, em 1987, "história de violência" onde o campo português é temperado pela memória do western; ou O Delfim, segundo José Cardoso Pires, talvez o seu maior sucesso público depois de Belarmino, relato da falência da burguesia rural e lápide, fria como mármore, posta sobre o seu túmulo. Alexandra Lencastre, que foi Maria das Mercês, a personagem principal de O Delfim, diz que Lopes "trazia em si a alma do romance", e que isso a ajudou a construir uma Maria das Mercês "que era um pouco de todos nós, um reflexo de um país, de um estrato social, do que é ser-se mulher". Morrisson diz que as personagens de Lopes eram "a sua posição na vida e no tempo". Silva Melo chama-lhe visionário, Seixas Santos diz que "acreditava que era possível fazerem-se coisas". E Lopes fez e fez outros fazerem: foi director da revista Cinéfilo, recriada nos anos 1970, esteve à frente do Centro Português de Cinema, e mais tarde, como decisor das co-produções da RTP, deu a primeira oportunidade a vários jovens cineastas (Manuel Mozos, Joaquim Leitão). "A RTP2 deve o seu nascimento e identidade a Fernando Lopes. Ele foi não só um cineasta mas um homem da televisão", diz Jorge Wemans, director da RTP2.

Também por isto foi uma figura fundamental das últimas décadas, um nome que se confundia com a história do cinema português. "Pugilista e poeta, campeões com jeito/e amadores de má vida", dizem os últimos versos do poema de O"Neill sobre Berlamino. Com licença de Lopes, "campeão com jeito", "amador de má vida", acabamos assim. A noite caiu, sigam os whiskies e os boleros. com Cláudia Carvalho, Lucinda Canelas, Luís Miguel Queirós e Tiago Bartolomeu Costa

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