Rever a revolução

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Hoje, se alguns continuam a mostrar-se orgulhosos da participação no processo, outros preferem “esquecer”

"A poesia está na rua" escrevia Sophia a 25 de Abril de 1974. As câmaras também.

O golpe de estado iniciara-se na rádio, com as senhas para avançar, E Depois do Adeus e Grândola Vila Morena, e mais tarde no Rádio Clube Português, "Aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas", e consumou-se à noite na RTP, com o aparecimento da Junta de Salvação Nacional de Spínola e Costa Gomes. Mas a registar o avanço dos militares e da sua legitimação popular estavam, juntamente com os microfones da rádio, as câmaras de fotografia - que consagrariam a imagem do cravo vermelho na ponta da espingarda quando, como contaria depois Salgueiro Maia, os cravos eram vermelhos mas também brancos - e de cinema.

Além de um registo imediato, Os Caminhos da Liberdade da Cinequipa, uma das várias cooperativas da altura, começava também nesse dia a rodagem de facto de As Armas e o Povo, que viria a ser uma espécie de "filme oficial" da Revolução, trabalho de 18 "trabalhadores do sector cinematográfico", de facto objecto anónimo e amorfo, já anacrónico à data da sua estreia, a 1 de Maio de 1975. Nesse filme distingue-se uma sequência, a de Glauber Rocha, então no exílio e um dos primeiros que empreenderam a "viagem à Revolução" em Portugal. Com ele, e no modo como interpela as pessoas, "a câmara é uma arma", para parafrasear o título da cantiga de José Mário Branco.

A premência da acção tornou-se imediatismo, o carácter "militante" em propaganda. Que resta do "cinema da Revolução? O objecto mais importante foi ainda uma reportagem televisiva, a de Adelino Gomes na tentativa de golpe spinolista a 11 de Março de 1975, quando o abraço das forças militares em presença, o dos paraquedistas que vinham de Tancos e as dos Regimentos de Artilharia de Lisboa, é feito também para as câmaras. Falando de filmes, muito pouco sobreviveram à voragem panfletária do período: o belíssimo Adeus, Até ao Meu Regresso de António-Pedro Vasconcelos, sobre os soldados na guerra colonial (há em DVD como extra de Os Imortais), o insólito Que Farei Eu com Esta Espada? de João César Monteiro, então militante comunista, combinando um nacionalismo retomado da Mensagem de Fernando Pessoa contra o "imperialismo americano" e as idiossincracias libidinais do autor, e dois filmes "no terreno", ambos concluídos já depois do fim do "processo revolucionário em curso", o PREC, a 25 de Novembro de 1975: Continuar a Viver ou os Índios da Meia-Praia de Cunha Telles - que 30 anos volvidos Pedro Sena Nunes retomaria em Elogio ao ½ - e Barronhos, Quem Teve Medo do Poder Popular? de Luís Filipe Rocha. De facto, os grandes filmes da "Revolução" foram feitos ou concluídos já "à posteriori", A Lei da Terra do Grupo Zero (Seixas Santos, Solveig Nordlund, Acácio de Almeida), Gestos e Fragmentos de Seixas Santos e a grande elegia, Bom Povo Português de Rui Simões.

Mas, como se disse, muitos vieram fazer a "viagem à Revolução" - por exemplo há uma dolorosa evocação em Bianca de Nanni Moretti - que Sérgio Tréfaut viria a abordar em Outro País. Do muito que em Portugal foi filmado, um objecto se destaca, Torre Bela de Thomas Harlan, filho do realizador do mais infame dos filmes nazis, O Judeu Süss, Veit Harlan.

Torre Bela seria objecto de uma mitologia própria. Foi o filme da "Revolução portuguesa" mais difundido internacionalmente, mas não em Portugal. Em 2004, numa série comemorativa dos 30 anos do 25 de Abril, o PÚBLICO editou em DVD uma versão de 82', mais tarde estreou em sala outro de 105', e agora a Cinemateca Portuguesa apresentou outra de 117' - e sempre se falou de uma versão de quatro horas.

Torre Bela afigurava-se como paradigma do "documentário revolucionário" enquanto objecto observacional de um processo de luta em curso, a ocupação da enorme herdade, propriedade do Duque de Lafões, perto de Alcoentre, e portanto, mesmo do ponto de vista da "legalidade revolucionária", fora da zona de intervenção da Reforma Agrária, que era a sul do Tejo - e as contradições entre as diferentes legitimidades são um dos aspectos mais interessantes do filme, como por exemplo naquele inesquecível momento em que um trabalhador reclama uma enxada como sua, propriedade individual, e o líder dos ocupantes, Wilson Filipe, diz-lhe que passou a ser tudo colectivo, de toda a cooperativa.

Já autor de um livro, A revolução de 74 pela imagem: do cinema à televisão, José Filipe Costa regressou a Torre Bela - como Sena Nunes já tinha regressado à Meia-Praia em Lagos - com Linha Vermelha, prémio da competição nacional do Indie do ano passado e agora em exibição, iniciado acompanhando uma ida de Alexandra Luas Coelho à herdade e às povoações vizinhas de Maçussa e Manique do Indentende, numa reportagem para este suplemento.

"Kino-Pravda", "cinema-verdade" era, nos anos revolucionários da Rússia, a designação para os filmes de Dziga Vertov. Depois, nos anos 60, surgiram as escolas do "Cinéma-verité" e do "direct cinema". Em síntese, dir-se-ia que o documentário é o registo da "verdade" dos acontecimentos, uma "doxa" ainda bem presente nas práticas documentais. Mas basta pensar no título mais famoso de Vertov, O Homem da Câmara de Filmar: se há uma câmara que documenta os factos, por trás dela há um homem e um ponto de vista - e sabemos hoje que o clássico Nannok of the North de Flaherty foi substancialmente re-encenado para a câmara.

Interrogando Harlan, já no seu leito de morte, o grande montador Roberto Perpignani, e os protagonistas dos eventos, sobretudo Wilson Filipe, José Filipe Costa empreendeu não apenas uma viagem de revisão da "Revolução", mas um fascinante e crucial ensaio sobre o poder das imagens e da sua manipulação. De facto, Harlan e a sua equipa foram parte integrante de todo o processo, estimulando acontecimentos "dramáticos", como o mais polémico de todos, a ocupação do Palácio do Duque, enquanto Perpignani se batia, dilacerado, na montagem de imagens que não correspondiam a uma presumida "pureza", com cenas construídas para impacto dramático, uma "retórica horrenda" e mesmo protagonistas alcoolizados. E hoje, se alguns continuam a mostrar-se orgulhosos da participação no processo, outros sentem "vergonha" perante as imagens ou preferem "esquecer".

Linha Vermelha é um exercício crítico e ensaístico de rara pertinência, um filme que doravante deve mesmo figurar nos programas, aulas e cursos de formação cinematográfica.

Com este espantoso do/comentário em exibição, mais o extraordinário É na Terra Não É na Lua de Gonçalo Tocha, primeiro filme português a ter ganho a competição internacional do DocLisboa, e que aliás acaba de vencer na secção Cinema do Futuro do Bafici de Buenos Aires, o mais importante festival da América Latina (em que, de resto, também uma retrospectiva integral foi dedicada a João Canijo), na expectativa de que algum distribuidor arrisque apresentar, quiçá mesmo num programa conjunto, o fascinante Para Além das Montanhas de Aya Koretzki e A Nossa Forma de Vida de Pedro Marques (que obteve recentemente uma menção honrosa de primeiras obras no prestigiado Cinéma du Réel em Paris), e, no que toca à ficção, o sublime Tabu de Miguel Gomes, como duvidar que estamos perante um momento áureo do cinema português? Infeliz e paradoxalmente, como também sabemos, é um momento de paragem de produção e de persistência em inacreditáveis decisões por parte de júris do Instituto de Cinema: como é possível que depois do imenso sucesso, português e internacional, de José e Pilar, Miguel Gonçalves Mendes tenha visto recusado o apoio a novo projecto?!

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