A fragilidade da democracia portuguesa na ordem do dia
38 anos depois de Abril, Portugal vive em crise e monitorizado internacionalmente. A qualidade da democracia preocupa personalidades ouvidas pelo PÚBLICO
Portugal comemora hoje o 38.º aniversário do 25 de Abril de 1974 vivendo uma crise económica sem precedentes: o Estado leva a cabo o terceiro programa de saneamento das finanças públicas e de reestruturação da sua economia na democracia, que obedece a um protocolo assinado com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. A particularidade do momento político que se vive levou a Associação 25 de Abril a retirar-se das celebrações oficiais da Revolução dos Cravos, atitude a que se juntou o ex-Presidente Mário Soares e o ex-vice-presidente da Assembleia da República Manuel Alegre.
Neste complexo contexto, o PÚBLICO questionou um grupo de personalidades de esquerda e de direita sobre a qualidade da democracia portuguesa, as suas fragilidades e os riscos que corre. Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas; Pedro Mexia, poeta; Ulisses Garrido, responsável pela formação no Instituto Sindical Europeu, com sede em Bruxelas; Isabel Allegro de Magalhães, professora catedrática da Universidade Nova e ex-dirigente do Graal; Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra; e Diana Andringa, jornalista e ex-candidata pelo Bloco de Esquerda, divergem na intensidade e nas razões da doença, mas o diagnóstico é comum: a democracia portuguesa não está bem.
Democracia em crise
Eugénio Fonseca diz que "a situação não é de crise do regime, é sobretudo de crise de governação", e lembra que, "em democracia, governar traz desafios maiores e quem governa tem de colocar interesses do povo à frente dos interesses pessoais ou corporativos".Insistindo em que não acredita que "a democracia possa estar em perigo ou desvalorizada nas suas potencialidades", defende que "é preciso criar condições para que a participação aconteça e haja uma democracia mais plena". Até porque, conclui: "As más experiências que as pessoas estão a viver podem tornar mais apetitoso o interesse por regimes não democráticos que nos privam do bem mais valioso que é a liberdade."
Mudança de paradigma
Também Pedro Mexia considera que a democracia "não está em risco, mas está em crise". Não desvalorizando a situação por que o país passa, o escritor e membro do Governo Sombra, na TSF, diz que "a democracia permite políticas que vão desde o liberalismo mais selvagem até à social-democracia". Sublinha que "há um modelo social europeu, que sempre foi associado à democracia, que está em risco", mas que "mudar de paradigma não é acabar com a democracia".Não deixa, porém, de destacar aspectos que vê como "pouco democráticos", como na Grécia e na Itália "terem sido nomeados governos que não saíram de eleições". E sustenta: "Um governo que funciona sem eleições não é democrático. Não me revejo em governos tecnocráticos. As decisões de governação são sempre políticas e ideológicas." E destaca outra dimensão: "Vivemos sob um regime soft de protectorado que tem uma dimensão um bocadinho humilhante para uma ideia de soberania que pensávamos manter ainda."
Igualmente, Ulisses Garrido não é radical na sua apreciação. "Não podemos dizer que a democracia foi de férias, mas temos hoje uma democracia autoritária, que se caracteriza por ter anulado as instituições de representação, onde a negociação social desapareceu e a equidade parece não ser uma preocupação", afirma o sindicalista, que alerta para um aspecto particular que permite o que vê como nova "atitude de imposição e de submissão ao outro". E aponta: "O poder conta com o controlo mediático, sobretudo das televisões."Garrido considera ainda como um sinal preocupante dessa nova atitude de imposição o facto de, "pela primeira vez, termos a nível europeu um tratado que tem carácter de não reversibilidade institucional do neoliberalismo: foi institucionalizada a ideologia".
"Sitiado por dentro"
Para Isabel Allegro de Magalhães, o país está "não só endividado, mas sitiado de fora, com uma troika a supervisionar as contas nacionais que empobrecem o país, deixando o enriquecimento aos happy few, mas sitiado por dentro: os que nos governam sem norte, sem um plano estratégico para o futuro". Esta professora catedrática diz: "Nem sequer são os bons alunos de Bruxelas, como eram os anteriores; são só "marrões" a tentar passar nos exames da troika, cumprindo e até excedendo os ditames externos. Uma espécie de cegueira obediente sem qualquer sensibilização do sofrimento alheio." E considerando que "até os direitos dos cidadãos" passassem a ser "problemas para a economia", conclui: "Com o Estado social a perder, com a sociedade civil nem ouvida nem achada, com as desigualdades obscenas, não temos democracia, ela está em pousio, Abril passa-lhe ao lado."Para Boaventura de Sousa Santos, que tem defendido que "vivemos numa democracia de baixa intensidade, porque as instituições estão quase esvaziadas", a situação actual equivale mesmo a um "período pós-institucional". E explica que há "um estado de emergência em que o Tribunal Constitucional tem estado silencioso perante actos" que significam "a suspensão da Constituição e os direitos esvaziados". O professor catedrático jubilado salienta ainda a existência de "uma promiscuidade total à revelia da democracia". E exemplifica: "Há, em Portugal e na Europa, líderes não eleitos, como António Borges, que foram todos funcionários da Goldman Sachs [o maior banco de investimento mundial, onde Borges foi vice-presidente do conselho de administração da filial de Londres, em 2000/08] e que estão colocados no poder com estatuto de vice-reis. A Goldman Sachs fornece pessoal ao poder e oferece posições a quem governou."
Diana Andringa entende que "há já diversos espaços de democracia que estão postos entre parêntesis", entre eles o do diálogo, já que há "um crescendo autoritário". Considerando que estão em causa "conquistas da democracia como o direito à habitação, como as pessoas que perdem as casas por dívida à banca, ou o direito ao trabalho", a jornalista aponta "a crescente desigualdade com a manutenção dos salários dos gestores, porque se entende que não podem ser tirados, mas podem ser tirados os salários aos trabalhadores". A concluir, Andringa considera que, "quando se pretende que as pessoas sejam culpadas das situações e se resolva tudo com a caridadezinha", se está "a ficar perigosamente parecido com a mentalidade anterior ao 25 de Abril".