Miguel Gomes Isto chama-se aurora

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RUI POÇAS

Encontro com Miguel Gomes e alguns DVDs. Tabu parte à procura da miragem de um "cinema extinto". Fazia sentido que a conversa decorresse perante imagens de filmes de vários cantos da história do cinema. Um "mundo perdido" é o que Tabu persegue. Não é filme de bricoleur, é filme de explorador.

Sem roteiro combinado, o crítico selecciona os DVDs, o realizador vê e comenta. Sem roteiro, mas com um ponto de partida dificilmente evitável: Murnau. Tabu é nome de filme de Murnau, e Aurora, como o Tabu de Miguel Gomes esteve para se chamar, também (mas a Aurora ficou: é o nome da protagonista feminina). No panteão da cinefilia, Murnau é figura suprema: o seu cinema é o exemplo máximo do inimitável. Provocação, blasfémia cinéfila, enfrentar o no trespassing como no Citizen Kane? Ou primeiro sinal de que - feito explorador - Miguel Gomes quer entrar num templo (da cinefilia), nas ruínas desse templo?

Sunrise(1927), Friedrich Wilhelm Murnau

Sunrise no leitor de DVD, e uma pergunta tão cândida quanto possível: que faz Murnau nesta história de um amor proibido entre um explorador e uma mulher casada, nos últimos anos da África colonial portuguesa, filmada a preto e branco e narrada pela envelhecida personagem do explorador num flash back que divide o filme ao meio separando presente e passado, com um "crocodilo melancólico" como testemunha?

"O filme esteve para se chamar Aurora mas houve um realizador romeno que fez um filme com esse nome, o que me lixou". Foi Cristi Puiu, e era um bom filme ("não sei, vi meia-hora e fui-me embora"). "Estamos a ver "Sunrise"... tenho uma memória fraca: o último plano deste filme é o sol a nascer ou não?". É uma aurora, sim, mas com um sol de efeito especial, quase só uma representação gráfica. Enquanto o DVD avança para o capítulo final para vermos a aurora de Murnau, Gomes conta que "a princípio tinha pensado acabar o filme com o nascimento de uma criança, a filha de Aurora". Seria "a aurora do filme, e estava a pensar filmar um parto real". O DVD chega à cena final. "Não sei porquê, no cinema o nascimento do sol é sempre uma coisa magnífica. A minha primeira longa, A Cara que Mereces, também acabava com um sol a nascer, tão artificial como este. E há outro filme de que gosto muito, Brigadoon do Minnelli, que começa com o sol a nascer numa Escócia imaginada mas muito escocesa, como se fosse um mundo a nascer".

Mas voltamos à ideia do parto como aurora, na primeira idealização do filme. "Depois o romeno fez o filme dele e decidi que ia passar para o último filme do Murnau, o Tabu, o que é preocupante porque ele morreu logo a seguir" - já nem assistiu à estreia, morreu num acidente de automóvel. "Havia uma vontade de dialogar com o Murnau, mas antes disso, de dialogar com o mudo, através da invocação/convocação de fantasmas, em que se devolvesse um tempo perdido, em sentido proustiano".

Perante o espantoso artificialismo de Sunrise, perguntamos se o resgate passava por aí, pela construção artificiosa de uma emoção avassaladora. "Todas aquelas oposições binárias, que hoje tendem a ser vistas como simplistas... queria resgatar um pouco disso - o tempo do amor e o tempo da solidão, o tempo da juventude e o tempo da velhice, a consciência política e a ausência da consciência política".

Mas, notamos, esse binarismo, em Murnau e noutros cineastas do mudo, não era um objectivo nem um fim, antes um modo de fazer, uma maneira de chegar a um fôlego lírico