Politólogos defendem que Sócrates não tinha de informar Cavaco
Politólogos são lapidares, nada no sistema político português obrigava Sócrates a informar Cavaco do PEC IV. Mas o Presidente ressuscitou a polémica
Nada obrigava José Sócrates a informar Cavaco Silva sobre as negociações do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC IV). Ou seja, não há nenhum dever de lealdade inscrito na Constituição que obrigasse a essa atitude pela parte do primeiro- -ministro, garantiram ao PÚBLICO os politólogos Marina Costa Lobo e António Costa Pinto, investigadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, comentando a acusação que o Presidente faz ao anterior primeiro-ministro no prefácio do livro de intervenções Roteiros VI, que reúne as suas principais intervenções públicas, divulgado no site do Presidente da República.
Cavaco Silva considerou desleal a posição do ex-primeiro-ministro José Sócrates de não o ter informado da apresentação do PEC IV nas instâncias comunitárias, e ao país. Foi o momento que antecedeu o chumbo na Assembleia da República daquele programa de austeridade e a posterior demissão de Sócrates como chefe do Governo. Ontem, três secretários-nacionais do PS e diversas figuras socialistas acusaram o Presidente de um ajuste de contas.
"O anúncio do "PEC IV" apanhou- -me de surpresa", reconhece Cavaco. "O primeiro-ministro não me deu conhecimento prévio do programa, nem me tinha dado conta das medidas de austeridade orçamental que o Governo estava a preparar e da sua imprescindibilidade para atingir as metas do défice público previstas para 2011, 2012 e 2013", continua o PR. Neste ponto, Cavaco introduz uma ressalva: "Pelo contrário, a informação que me era fornecida referia uma situação muito positiva relativamente à execução orçamental nos primeiros meses do ano." Depois, explicita: "O primeiro-ministro não informou previamente o Presidente da República da apresentação do Programa de Estabilidade e Crescimento às instituições comunitárias, tratou-se de uma falta de lealdade institucional que ficará registada na história da nossa democracia." E conclui: "O Presidente da República nos termos constitucionais deve ser informado acerca de assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país."
Autonomia do PM
Costa Pinto começa por explicar que apesar de Cavaco no prefácio remeter para o princípio constitucional da obrigação de o primeiro-ministro (PM) informar o Presidente, este princípio não se aplica a esta situação. "Na realidade, isso não acontece, no nosso semipresidencialismo o primeiro-ministro tem autonomia e não está preso ao dever de lealdade", afirma, acrescentando que tal só se aplica se, "no início dos mandatos, ambos estabelecerem que vão ter esse comportamento político".Este politólogo sublinha que o tipo de negociação que estava em causa era peculiar. Estava em causa uma negociação não de um acordo ou de um tratado internacional, mas "negociações entre o primeiro-ministro e a União Europeia". Costa Pinto chama a atenção para que "há uma área transnacional da União Europeia que é cada vez mais uma zona de limbo."
Marina Costa Lobo interpreta no mesmo sentido os factos e o seu enquadramento político institucional. "Na Constituição existe uma norma que prevê que o primeiro-ministro informe o Presidente sobre questões de política interna e externa", reconhece esta investigadora, mas acrescenta que "a Constituição não concretiza quais os assuntos sobre os quais o Presidente tem de ser informado pelo primeiro-ministro".
Além disso, Marina Costa Lobo lembra que, "desde 1982, o Governo deixou de responder politicamente ao Presidente". Pelo que, prossegue a investigadora, "há assim uma margem de manobra na relação que resulta da interpretação da solidariedade que deve haver entre ambos".
A este enquadramento jurídico, Marina Costa Lobo aduz a questão política e a tensão que se vivia há um ano. "Sabe-se que as relações estavam deterioradas do ponto de vista político, não era o dever de informação" tal como está inscrito na Constituição "que ia obrigar José Sócrates a informar".
E Marina Costa Lobo salienta que Cavaco Silva "também é explícito no prefácio a eximir-se a responsabilidades". E conclui: "Cavaco Silva, na posse, mudou de atitude perante o Governo. Ele sabe que as suas críticas eram desgastantes da relação. Era ingénuo pensar que, depois daquele discurso de posse, receberia informações do primeiro-ministro, baseado em cooperação estratégica que não existia."
Sócrates mudou
No prefácio, Cavaco Silva não deixa de sublinhar "que esta atitude contrastou de forma flagrante com aquela que o Governo [de Sócrates] tinha adoptado meses antes, no processo de aprovação do Orçamento do Estado [OE] para 2011".A propósito, Cavaco recorda que Sócrates o informou, "com algum detalhe", sobre as intenções do executivo e as dificuldades que poderiam surgir nas negociações com o PSD. "Foi-me assim possível, durante cerca de dois meses, acompanhar de perto as questões políticas e financeiras relacionadas com a aprovação do Orçamento, desenvolver contactos com dirigentes partidários, apoiar as negociações e favorecer os entendimentos." Para que a importância do envolvimento de Belém na aprovação do OE de 2011 fique clara, o Presidente destaca que "conseguiu evitar-se a ocorrência de uma crise política que, a precipitar-se naquela altura, seria particularmente grave".
É, assim, estabelecido um "antes e depois" do PEC IV. Antes, na aprovação do OE: "Estando informado das questões em aberto e dos pontos sob controvérsia, pude actuar de modo a estimular as negociações." Era "a magistratura activa" desenvolvida a par da "cooperação estratégica".