Politólogos defendem que Sócrates não tinha de informar Cavaco

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As relações institucionais entre Cavaco Silva e José Sócrates foram-se deteriorando com o passar do tempo DANIEL ROCHA

Politólogos são lapidares, nada no sistema político português obrigava Sócrates a informar Cavaco do PEC IV. Mas o Presidente ressuscitou a polémica

Nada obrigava José Sócrates a informar Cavaco Silva sobre as negociações do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC IV). Ou seja, não há nenhum dever de lealdade inscrito na Constituição que obrigasse a essa atitude pela parte do primeiro- -ministro, garantiram ao PÚBLICO os politólogos Marina Costa Lobo e António Costa Pinto, investigadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, comentando a acusação que o Presidente faz ao anterior primeiro-ministro no prefácio do livro de intervenções Roteiros VI, que reúne as suas principais intervenções públicas, divulgado no site do Presidente da República.

Cavaco Silva considerou desleal a posição do ex-primeiro-ministro José Sócrates de não o ter informado da apresentação do PEC IV nas instâncias comunitárias, e ao país. Foi o momento que antecedeu o chumbo na Assembleia da República daquele programa de austeridade e a posterior demissão de Sócrates como chefe do Governo. Ontem, três secretários-nacionais do PS e diversas figuras socialistas acusaram o Presidente de um ajuste de contas.

"O anúncio do "PEC IV" apanhou- -me de surpresa", reconhece Cavaco. "O primeiro-ministro não me deu conhecimento prévio do programa, nem me tinha dado conta das medidas de austeridade orçamental que o Governo estava a preparar e da sua imprescindibilidade para atingir as metas do défice público previstas para 2011, 2012 e 2013", continua o PR. Neste ponto, Cavaco introduz uma ressalva: "Pelo contrário, a informação que me era fornecida referia uma situação muito positiva relativamente à execução orçamental nos primeiros meses do ano." Depois, explicita: "O primeiro-ministro não informou previamente o Presidente da República da apresentação do Programa de Estabilidade e Crescimento às instituições comunitárias, tratou-se de uma falta de lealdade institucional que ficará registada na história da nossa democracia." E conclui: "O Presidente da República nos termos constitucionais deve ser informado acerca de assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país."

Autonomia do PM

Costa Pinto começa por explicar que apesar de Cavaco no prefácio remeter para o princípio constitucional da obrigação de o primeiro-ministro (PM) informar o Presidente, este princípio não se aplica a esta situação. "Na realidade, isso não acontece, no nosso semipresidencialismo o primeiro-ministro tem autonomia e não está preso ao dever de lealdade", afirma, acrescentando que tal só se aplica se, "no início dos mandatos, ambos estabelecerem que vão ter esse comportamento político".

Este politólogo sublinha que o tipo de negociação que estava em causa era peculiar. Estava em causa uma negociação não de um acordo ou de um tratado internacional, mas "negociações entre o primeiro-ministro e a União Europeia". Costa Pinto chama a atenção para que "há uma área transnacional da União Europeia que é cada vez mais uma zona de limbo."

Marina Costa Lobo interpreta no mesmo sentido os factos e o seu enquadramento político institucional. "Na Constituição existe uma norma que prevê que o primeiro-ministro informe o Presidente sobre questões de política interna e externa", reconhece esta investigadora, mas acrescenta que "a Constituição não concretiza quais os assuntos sobre os quais o Presidente tem de ser informado pelo primeiro-ministro".

Além disso, Marina Costa Lobo lembra que, "desde 1982, o Governo deixou de responder politicamente ao Presidente". Pelo que, prossegue a investigadora, "há assim uma margem de manobra na relação que resulta da interpretação da solidariedade que deve haver entre ambos".

A este enquadramento jurídico, Marina Costa Lobo aduz a questão política e a tensão que se vivia há um ano. "Sabe-se que as relações estavam deterioradas do ponto de vista político, não era o dever de informação" tal como está inscrito na Constituição "que ia obrigar José Sócrates a informar".

E Marina Costa Lobo salienta que Cavaco Silva "também é explícito no prefácio a eximir-se a responsabilidades". E conclui: "Cavaco Silva, na posse, mudou de atitude perante o Governo. Ele sabe que as suas críticas eram desgastantes da relação. Era ingénuo pensar que, depois daquele discurso de posse, receberia informações do primeiro-ministro, baseado em cooperação estratégica que não existia."

Sócrates mudou

No prefácio, Cavaco Silva não deixa de sublinhar "que esta atitude contrastou de forma flagrante com aquela que o Governo [de Sócrates] tinha adoptado meses antes, no processo de aprovação do Orçamento do Estado [OE] para 2011".

A propósito, Cavaco recorda que Sócrates o informou, "com algum detalhe", sobre as intenções do executivo e as dificuldades que poderiam surgir nas negociações com o PSD. "Foi-me assim possível, durante cerca de dois meses, acompanhar de perto as questões políticas e financeiras relacionadas com a aprovação do Orçamento, desenvolver contactos com dirigentes partidários, apoiar as negociações e favorecer os entendimentos." Para que a importância do envolvimento de Belém na aprovação do OE de 2011 fique clara, o Presidente destaca que "conseguiu evitar-se a ocorrência de uma crise política que, a precipitar-se naquela altura, seria particularmente grave".

É, assim, estabelecido um "antes e depois" do PEC IV. Antes, na aprovação do OE: "Estando informado das questões em aberto e dos pontos sob controvérsia, pude actuar de modo a estimular as negociações." Era "a magistratura activa" desenvolvida a par da "cooperação estratégica".

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