O alter ego de Ingmar Bergman

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Bergman, como é sabido, cultivou a fidelidade no trabalho com os actores, e são muitos os rostos (de homens e de mulheres) recorrentes nos seus filmes; mas Josephson foi o único que resistiu aos "períodos " e às "épocas" - esteve lá sempre, durante 57 anos, a tal ponto que se tornou, para os espectadores mas também para o próprio Bergman, numa espécie de "alter ego" AFP
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Bergman, como é sabido, cultivou a fidelidade no trabalho com os actores, e são muitos os rostos (de homens e de mulheres) recorrentes nos seus filmes; mas Josephson foi o único que resistiu aos "períodos " e às "épocas" - esteve lá sempre, durante 57 anos, a tal ponto que se tornou, para os espectadores mas também para o próprio Bergman, numa espécie de "alter ego" AFP

Foi um dos grandes, grandes actores do cinema do século XX, esse século de que, também por razões como este desaparecimento, vamos ficando cada vez mais longe. Durante 57 anos esteve comnosco no cinema de Bergman

No domingo passado, dia em que foi anunciada a morte de Erland Josephson, havia outro sueco, Max von Sydow, igualmente oriundo da "troupe" de actores de Ingmar Bergman, nomeado para um Óscar (de actor secundário) pelo seu desempenho num filme de Stephen Daldry, Extremamente Alto, Incrivelmente Perto. Por mais que relativizemos a importância dos Óscares, desejámos que Von Sydow ganhasse a estatueta: seria por certo ocasião para, no discurso de agradecimento, o mundo inteiro ouvir falar de Erland Josephson.

É que, ao contrário de Von Sydow, ou de Liv Ullmann, que começaram por se destacar nos filmes de Ingmar Bergman e depois partiram para bem sucedidas carreiras "internacionais", Erland Josephson, nascido em 1923, permaneceu sempre um actor sueco e fundamentalmente bergmaniano. Fez filmes no estrangeiro e com outros realizadores (já lá iremos), mas o seu reconhecimento fez-se por norma a partir dos filmes de Bergman, e por parte dos espectadores de Bergman. Entrou em 13 filmes do gigante sueco, do segundo (Chove no Nosso Amor, de 1946) ao último (Sarabanda, de 2003). Bergman, como é sabido, cultivou a fidelidade no trabalho com os actores, e são muitos os rostos (de homens e de mulheres) recorrentes nos seus filmes; mas Josephson foi o único que resistiu aos "períodos " e às "épocas" - esteve lá sempre, durante 57 anos, a tal ponto que se tornou, para os espectadores mas também para o próprio Bergman, uma espécie de "alter ego", o seu "representante" dentro dos filmes (e por exemplo, quando Liv Ullmann filmou, no ano 2000, com argumento de Bergman, um filme à clef sobre o relacionamento entre os dois, quem interpretou a personagem chamada "Bergman" foi Josephson).

Era um homem do teatro, meio em que no final dos anos 30 conheceu Bergman e se tornou amigo dele. Nunca deixou de ser, antes do mais, um "homem do teatro" (foi director artístico do Teatro Real de Estocolmo durante perto de dez anos, entre os anos 60 e 70), razão que em parte deve servir para explicar a falta de interesse em seguir uma "carreira" no cinema. Dizia, numa entrevista: "Se passar muito tempo sem actuar num palco, começo a não me sentir bem. Fico maluco nos primeiros dias de ensaios, adoro toda a gente, adoro o palco, adoro a sala. O sentimento nunca é tão forte num estúdio de cinema, porque há uma coisa mágica no espaço de um teatro. Sabemos que vamos lá estar e que ali vão acontecer coisas reais, verdadeiras."

Apesar da gravidade associada ao cinema de Bergman, e à generalidade das personagens que desempenhou para ele, a representação em cinema foi algo que durante décadas encarou com relativa ligeireza, quase como um divertimento, manobras de cumplicidade com o seu amigo Ingmar. Citemo-lo, ainda: "Nunca pensei nos filmes como o meu trabalho. Era divertido, era uma boa maneira de estar com as pessoas, e interessava-me observar o que se passava no estúdio. Mas não me interessei muito pela representação em cinema até Lágrimas e Suspiros [de 1972], quando subitamente tirei dali alguma coisa que nunca tinha tirado."

Foi, em coincidência com esse interesse descoberto, o momento em que Josephson ganhou proeminência como possível "alter ego" de Bergman - logo a seguir, nas Cenas de Um Casamento, onde Bergman o fez, de facto, ocupar o seu lugar, partilhando o leito conjugal com Liv Ullmann. Personagem, ou personagens, que reencontrámos muitos anos depois, no "filme-testamento" do cineasta que foi Sarabanda, definitiva e poderosamente "colando" a imagem de Josephson à de Bergman. Mas nem tudo foi "colagem", evidentemente. Pensamos, por exemplo, num dos mais memoráveis papéis de Josephson, o velho "mago" Isak de Fanny e Alexandre, que assustava o miúdo protagonista fazendo-o ouvir o que ele pensava ser "a voz de Deus" e depois o iniciava num mundo de fantasia e de imaginação, que não era outro que não o universo do teatro, ou o universo do cinema.

Fora Bergman, o cineasta que mais se interessou por Josephson foi Andrei Tarkovski, para os seus filmes finais (feitos fora da URSS), Nostalgia e O Sacrifício (de resto, filme feito na Suécia, e não apenas por isso tangente a certos aspectos do mundo bergmaniano). Mais contemplativo do que Bergman, Tarkovski buscou em Josephson menos o "actor" e mais a "presença", uma espécie de majestade atormentada, menos caricatural (porque em muito do que Josephson fez para Bergman há essa dimensão de autocaricatura ácida, em termos pessoais, em termos sociais, em termos "de classe"), em todo o caso um registo diferente, mais etéreo, quase se diria mais "lunar". Mas também outro realizador estrangeiro, por acaso recentemente falecido, Theo Angelopoulos, lhe ofereceu um grande papel durante os anos 90 - foi em O Olhar de Ulisses, onde Josephson interpretava o director de um arquivo fílmico (que valia, salvo erro, pela cinemateca de Sarajevo, ou coisa que o valha).

Para encontrar uma espécie de "retrato" de Josephson, ou de "fotografia" da sua amizade e relação com Bergman, vale a pena procurar um programa da televisão de princípios dos anos 2000 que teve circulação internacional em sala. Nele, e num dispositivo simples de entrevista, Bergman e Josephson falavam sobretudo de coisas corriqueiras, pessoais, falavam de mulheres, de alegrias e tristezas, diziam disparates, repeliam o desespero com uma gargalhada. Sem máscaras, ou com uma outra, e inesperada, máscara.

Josephson morreu aos 88 anos, de problemas derivados da doença de Parkinson. Foi um dos grandes, grandes actores do cinema do século XX, esse século de que, também por razões como este desaparecimento, vamos ficando cada vez mais longe.

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