Miopia intelectual

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Com uma imensa clareza e uma absoluta tranquilidade, Diogo Feio assume uma série de divergências maiores

A forma como a entrevista do eurodeputado do CDS, Diogo Feio, ao PÚBLICO (27/02/2012) passou despercebida é um sintoma de como a existência de um domínio crescente do pensamento único sobre a sociedade portuguesa é pernicioso e empobrecedor da democracia. De modo crescente, a sociedade portuguesa está padronizada num perfil unívoco e alastra a paralisia do pensamento, a incapacidade de questionar a realidade e o poder, de exercer a consciência crítica, de olhar o diverso ou o diferente. Alastra uma espécie de miopia intelectual, uma limitação da observação dos pormenores, dos limites, dos contornos. Está impossibiliada a percepção da divergência, no que é, insisto, uma grave limitação da democracia e do debate político que lhe é inerente.

É certo que podemos sempre dizer que Diogo Feio é eurodeputado e que, portanto, goza de um estatuto especial - assim como os malucos, antigamente, nas aldeias, que tinham direito a uma certa impunidade e conivência paternalista. Ou seja, há em Portugal uma espécie de complacência em relação aos eurodeputados, que são muitas vezes vistos como extraterrestres que vivem noutro planeta e até noutra galáxia. Isto porque, em Portugal, a União Europeia continua a ser vista como uma entidade externa e distante e não como algo que faz parte do nós colectivo que é ser português, logo europeu, membro de uma comunidade europeia. E, consequentemente, as posições dos eurodeputados são desvalorizadas.

Mas Diogo Feio não é um político qualquer. Diogo Feio é uma das figuras centrais no que é o círculo de poder de Paulo Portas. Diogo Feio é determinante no gizar da estratégia política do CDS a curto, a médio e a longo prazo. E quem conhece Diogo Feio sabe que ele não age de acordo com um projecto pessoal de poder. Diogo Feio não age individualmente e embora tenha pensamento próprio e uma sólida preparação cultural e técnica, não publicita as suas posições próprias e o pensamento político autónomo que tem dentro da direcção do CDS. Além disso, quem conhece Diogo Feio sabe que, ainda que ele não peça autorização para falar, nunca tomaria posições publicamente que não fossem do conhecimento do líder do CDS, Paulo Portas.

Ora, na entrevista do PÚBLICO, Diogo Feio assume várias posições heterodoxas em relação ao que é a doutrina do Governo sobre a crise a superação da crise em Portugal e na Europa. Indo contra o que são as posições oficiais do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e contra o que tem sido sustentado pelo ministro das Finanças, Vítor Gaspar. Basta ler o artigo de opinião que Gaspar escreveu na revista Visão da semana passada - um verdadeiro acto de proclamação de fé, que pouco tem de racional - para perceber o quanto as posições de Diogo Feio são divergentes em relação à linha de orientação e acção do Governo. Logo, esta entrevista de Diogo Feio é a demonstração de que há um discurso divergente e alternativo no seio da própria coligação governamental. E é expresso por um dirigente do CDS que integra o círculo privado de Paulo Portas.

Ainda que reafirmando que o Governo age bem e não questionando a sua acção directa, Diogo Feio diverge claramente de posições estratégicas centrais de Passos e de Gaspar. Assim, Diogo Feio começa por dizer que o CDS está calado no Governo para ninguém dizer que este partido se põe "em bicos de pés". Mas, de seguida, com uma imensa clareza e uma absoluta tranquilidade, assume uma série de divergências maiores em relação ao que tem sido defendido pelo primeiro-ministro. E, demarcando-se da hegemonia franco-alemã, afirma: "É preciso uma reacção. Uma solução para a Europa faz-se com instrumentos europeus comuns. Eurobonds, que são um instrumento a médio prazo e com coordenação das políticas económicas. Cada vez mais, o poder que os Estados têm decide-se em Bruxelas e é aí que se tem que defender os interesses dos Estados. Não vale a pena berrar na Moncloa, no Terreiro do Paço, em Berlim."

E, mais à frente, considera necessário, por agora, cumprir o acordo, mas acrescenta: "Não tenho problema nenhum em dizer que, no futuro, e ainda neste mandato, o Governo de Portugal vai ter que ser mais interventivo e com voz própria nos assuntos do futuro da Europa." Passando a concretizar: "Há medidas que podem ser tomadas sem revisão do tratado ou com mexidas minimalistas. Mais tarde ou mais cedo, vai ter de existir uma revisão profunda do tratado, mas tem de haver circunstâncias políticas para o fazer." E defende ainda como "evidente que tem de se alterar o estatuto do Banco Central Europeu", quando questionado sobre a necessidade de um banco emissor a nível da União Europeia.

Mas um dos aspectos mais subtis e mais extraordinários desta entrevista de Diogo Feio é a forma como ele abate a ideia de uma eventual candidatura de Durão Barroso a Presidente da República: "Para que Durão Barroso pudesse ser apontado como candidato a Presidente da República teria de haver, antes de mais, vontade da sua parte. E teria de haver a percepção, no espaço político do PSD e do CDS, de que era o melhor candidato. Não tenho nem o primeiro pressuposto nem o segundo como evidentes neste momento." E abre assim caminho a uma candidatura do CDS. Quem sabe até se de Paulo Portas?

Tristemente, pobremente, antidemocraticamente, a entrevista passou despercebida. Como se o monolitismo, típico dos totalitarismos, tivesse já anestesiado a massa crítica em Portugal. E a insensibilidade perante a divergência, o diferente, o novo, fosse absoluta. E Portugal estivesse atacado por uma epidemia de miopia intelectual. Jornalista (sao.jose.almeida@publico.pt)

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