Torne-se perito

Casais portugueses não têm dinheiro nem tempo para o segundo filho

A fecundidade em Portugal está abaixo da desejada e não é por opção: as dificuldades económicas e de conciliação família-trabalho são os principais travões

Se as mulheres portuguesas pudessem ter os filhos que desejam, Portugal estaria próximo dos 2,1 filhos por mulher em idade fértil necessários para garantir a substituição das gerações e travar o aceleradíssimo envelhecimento do país. "As preocupações financeiras, a instabilidade profissional e a falta de creches e infantários são os principais motivos para o adiamento ou recusa em avançar para o segundo filho", aponta a socióloga do Instituto de Ciências Sociais (ICS) Vanessa Cunha, co-autora de um estudo sobre as trajectórias de vida dos portugueses.

A constatação de que a fecundidade real em Portugal está longe da desejada é partilhada pela maioria dos oradores na conferência Nascer em Portugal, que decorre hoje em Lisboa, promovida pelo Presidente da República, Cavaco Silva, e que vai pôr demógrafos, médicos, economistas e sociólogos a discutir as razões pelas quais as mulheres portuguesas têm cada vez menos filhos.

Os números são conhecidos. Em 1960, nasceram 213.895 crianças, o equivalente a 3,2 crianças por mulher em idade fértil. Nesse ano, morreram 95.007 indivíduos. Em 2010, nasceu menos de metade das crianças: 101.507, o equivalente a 1,37 crianças por mulher em idade fértil. Nesse ano, morreram 106.242 indivíduos. Temos assim que em 50 anos o país passou de um saldo natural positivo de 118.888 pessoas para um saldo natural negativo de 4735 indivíduos. Se considerarmos que no mesmo período a esperança média de vida à nascença aumentou de 67,1 para 79,2 anos, temos o retrato do que somos: o sétimo país mais envelhecido do mundo.

Portugal não está sozinho neste declínio. Mas apresenta algumas especificidades. "Na geração de portuguesas que nasceram em meados dos anos 60, e que têm hoje 45 anos, só 5% não tiveram filhos. É a proporção mais baixa da Europa e contrasta com a persistente fecundidade baixa de países como a Alemanha e a Áustria, onde a proporção de mulheres sem filhos é muito elevada", distingue Karin Wall, investigadora do ICS e uma das coordenadoras do Observatório das Famílias e das Políticas da Família, para quem "as famílias vivem na tensão crescente entre o desejo de ter filhos, e de lhes dar uma infância protegida, e o medo de com isso porem em causa o bem-estar material da família, bem como a realização profissional, nomeadamente da mulher".

Apesar disso, "o ideal do segundo filho continua consolidado na sociedade", constata Vanessa Cunha, "mas tende a ser sucessivamente adiado ou mesmo hipotecado por causa das dificuldades que as pessoas sentem". No inquérito que vai apresentar na conferência de hoje - feito entre 2009 e 2010 a 500 homens e mulheres entre os 35 e os 40 anos -, 22% dos inquiridos não tinham tido filhos e 35% tinham apenas um filho. Questionados sobre as razões para não avançar para um segundo filho, 78% apontaram o custo elevado da educação, 73% as preocupações financeiras, 66% a instabilidade profissional, 61% a falta de apoios públicos, como creches, e, por último, 47% as dificuldades de conciliação com a vida profissional.

Filhos, esse luxo

Havendo, como sublinha Vanessa Cunha, "este acerto entre o que quer o Estado e o que querem as pessoas", em que sentido devem ir as políticas públicas? "O custo de criar e educar uma criança faz apelo a um apoio económico das famílias, em termos de benefícios fiscais e de abonos, mais ainda quando temos tantas famílias com dificuldades económicas e baixa escolaridade", responde Karin Wall. Nesse sentido, os cortes no abono de família, efectuados quando, em Novembro de 2010, José Sócrates fez desaparecer os 4.º e 5.º escalões, "foram um exemplo do que não deve ser feito". "Importantíssimo é tudo o que ajude na conciliação entre vida familiar e profissional e tudo o que seja serviço de apoio à família, como creches, infantários, escola a tempo inteiro", prossegue a socióloga.

Considerando que o cenário melhorou muito - "em 1990 só 12% das crianças portuguesas tinham lugar numa creche e hoje esse valor está próximo dos 40%" -, Wall diz ser crucial que esse esforço seja reforçado, sob pena de a crise e o desemprego que já galopou para os 14% se traduzir num abaixamento ainda mais acelerado da fecundidade. "A pequena majoração para as famílias no subsídio de desemprego é muito pouco e, em termos de fecundidade, só resulta se houver consistência num pacote mais global", sublinha, temendo que a ideia de aumentar o número de lugares nas salas das creches em vez de aumentar o número de instituições, apresentada recentemente pelo Ministério da Solidariedade e Segurança Social, "represente já um retrocesso". Que "vai sair caro ao país", como lembra Mário Leston Bandeira, outro dos oradores da conferência, para quem o caminho mais curto para transformar Portugal num país de grisalhos é persistir num modelo que promove a precariedade e a insegurança no emprego.

"Os filhos estão transformados num luxo. Quem é que os pode ter? Quem tem recursos muito acima da média ou quem não tem racionalidade económica", acusa o ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Demografia. Para mitigar as dificuldades de quem quer ter filhos, Leston Bandeira elege ainda o incremento "de infantários a preços acessíveis e o combate ao estigma que, nas empresas, recai sobre a maternidade das mulheres".

Apesar de considerar utópico pretender travar o envelhecimento e pôr o país a crescer por via da natalidade, a demógrafa Maria João Valente Rosa concorda que é urgente facilitar a conciliação da vida familiar e profissional. "Em Portugal há uma fraquíssima percentagem de mulheres a trabalhar a tempo parcial - 16%, contra uma média europeia de 32% - e, como temos filhos precisamente na idade em que precisamos de apostar mais na carreira, temos que pensar em rever os tempos da carreira. Por que é que esta não pode ser aligeirada a meio da vida e distendida até mais tarde?", questiona, considerando que numa altura em que a esperança de vida está nos 80 anos "não faz sentido continuar a concentrar tudo até aos 65 anos".

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