Falar mal

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loades,

de muitos amados

os de mal dizer

Martim Moxa, trovador medieval

Instado a definir com uma só palavra os portugueses, o historiador Rui Ramos declarou há tempos que somos "faladores". "Mais do que pensar ou fazer, os portugueses falam", acrescentou.

Falam, falam, falam, diz uma conhecida personagem dos Gatos Fedorentos. É um retrato certeiro que capta o nosso "funcionário modo de ser". Os portugueses, de facto, falam; são melhores faladores do que pensadores; e não são também muito industriosos. Mas eu aditaria mais qualquer coisa. De que falam os portugueses? Pois bem. Em regra, criticam, escarnecem, vituperam; falam mal, dizem mal. O grande prazer de ser português é, entre outros mais benignos, o prazer de dizer mal. Quem é português diz mal. Quem não é não diz mal - ou não diz tão mal. Parece simples.

Esta propensão do português para o chamado pensamento negativo é muitas vezes incompreendida e renegada por aqueles que gostariam que fôssemos diferentes. É aquele ministro que apela ao mais olímpico optimismo; o reclame da Coca-Cola que lista as razões para acreditarmos num país melhor; o intelectual piedoso que escreve "contra a autoflagelação". Mas desde as cantigas do D. Dinis que aquilo que nos caracteriza enquanto povo é um apurado instinto para maldizer. Não existe língua que transmita, em maior número de verbos, alguns arcaicos, tanto negativismo: escarnir, escarnecer, chufar, desdizer, posfaçar, profaçar, travar, caluniar, apoer.

Não o digo com ironia. Aliás, o português nem tem ironia. Tem sarcasmo, bílis, escárnio. Especializou-se no epigrama e no dichote. Não se ri senão da ruína alheia. Diz mal daquilo que está mal e até daquilo que está bem. Quando dizemos mal, não existe propriamente lucidez diferenciadora, nem vontade de ser justo.

É isto que muita gente, turistas, curiosos, duplos nacionais, funcionários da troika, não vê. Eles chegam cá, distribuem conselhos e ordens, mas não atingem a essência mais viva da "portugalidade": não percebem por que dizemos tão mal. Estes estrangeiros que nos visitam e os outros portugueses que fingem ser estrangeiros, que pretendem mudar-nos à força, acreditam que este povo é dado à autoflagelação porque não foi educado para o triunfo. Porque não foi educado, ponto final. Pensam que se dizemos mal é porque não nos valorizamos, nem nos sabemos vender. Porque fazemos gala em medinocarreirar, em vascopulidovalentear, se é que me entendem.

O que não percebem estes metecos, estrangeirados, aculturados por povos experientes em positivizar, é que as razões por que negativizamos tanto não têm nada a ver com as nossas incapacidades comerciais e vendedoras. Nem por sermos um povo particularmente punitivo ou de baixa auto-estima.

Acontece que nós, portugueses, gostamos de levar uma vida que funciona como uma espécie de sabotagem. A vida como sabotagem é a nossa maior descoberta de sobrevivência; poupa-nos a grandes decepções; e é a melhor resposta que encontrámos para viver num país e numa sociedade pequena. Mas, como todas as descobertas, esta também tem um lado funesto. Para um povo orgulhoso como é o português, pode dizer-se que nos esmeramos em sabotar tudo o que fazemos; retiramos às coisas o seu significado e seriedade; fazemos revoluções, duelos mortíferos, grandes proclamações de princípio, mas depois acaba sempre tudo como dantes. Não se avança nem se recua. Fica-se como se estava.

De modo que, quando se juntam dois portugueses que são portugueses porque gostam de dizer mal e aproxima-se outro português que só gosta de dizer bem, que não abdica de evidenciar os melhores e mais positivos ângulos, os portugueses que gostam de dizer mal sentem-se frustrados, desconfiados, desaustinados. O português que só consegue dizer bem não vive segundo a sabotagem. Além disso, só pode ser um chato do caraças.

Portanto, políticos do meu país: não maldigam a nossa maledicência. Aprendam a viver com ela. Connosco, está tudo bem. Jurista

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