Um lugar que espere por nós

A “cultura orgânica” do catolicismo português, toda feita de visão de mundo e “formas de vida” e não já de Igreja, encontra a sua derradeira manifestação poética.

“Cobra d''água”, último livro de A. M. Pires Cabral, estrutura-se em duas partes, “Sarabanda” e “Requiem”, a primeira colocada sob a égide de Haendel, a segunda sob a de Mozart. Curiosamente, os poemas que, a meio de cada uma dessas partes, abordam a obra dos compositores em causa são dos menos convincentes do livro, o que talvez explique o carácter identicamente pouco convincente da arrumação proposta. O livro não nos persuade do seu pé (ou sequer meio-pé) para a dança, tanto mais que a parte inicial, em poemas como “A chaga”, “A grossa língua de Deus”, “Bipolar” ou “Entreabre-me a porta”, parece tentar antes um diálogo com o José Régio do drama teológico e crístico (mais o primeiro do que o segundo), coisa dada, em Régio e em Pires Cabral, a figurações expressionistas mas hieráticas, como é patente nos versos finais de “Bipolar”: “Sei é que / vou ficando cansado de ter / no meu próprio interior a arena onde sem brio / nem progresso visível para qualquer dos lados / nos defrontamos eu e o meu touro, / perpetuamente empatados”. O livro abre, porém, com um dos grandes poemas do autor, “Elegia do reencontro”, que é também uma lição de singeleza e eficácia retórica, muito típica deste Pires Cabral tardio, neste caso no uso da anáfora (“Diz-me que sim”, “Diz-me que”) responsável pela estrutura, em forma de salmo, do poema. “Diz-me que sim, que voltarei a vê-los / aqueles de quem fui contemporâneo”: o drama da presença (“Eles eram meus e fizeram-se-me em fumo”), que é também o drama da Voz (“Diz-me que sim, que a fala lhes será / restituída, e farão dela um uso festivo”) e da nomeação (“diz-me que sim, que voltarei a vê-los /e a chamar pelo nome”), estrutura esta escatologia em forma de elegia mas que se deseja, de facto, cântico do Dia da Ressurreição (“Diz-me que não foram eficazes / as diligências do tempo para os corroer, / diz-me que carne e pele triunfarão no dia / do reencontro”). O que nos oferece de novo a constatação de que neste último Pires Cabral a “cultura orgânica” do catolicismo português, toda feita de visão de mundo e “formas de vida” e não já de Igreja - o que era ainda, e apesar de tudo, o drama historicamente específico de um Ruy Belo -, encontra a sua talvez derradeira manifestação poética.

A sarabanda está antes presente no regime oscilante entre essa garantia de que veremos um triunfo final da carne e a percepção aguda do embuste do sentido. Num outro poema magnífico, “Não me mostres nenhum norte”, denuncia-se justamente isso - “Não me mostres nenhum norte / nem estradas para lá: / são tudo embustes.” -, pedindo-se que, em alternativa, se mostrem “pedras, folhas mortas / de Outono atapetando o chão das matas”. A conclusão recalca a rima natural para “norte” no poema (“morte”, obviamente), solicitando contudo a sua tradução em imagem: “Quero eu dizer: mostra-me coisas / daquelas que se corrompem sem pressa”. O poder da poesia, como percebemos neste Pires Cabral, mora todo nos efeitos secundários activados pela imagem, e não tanto nas suas ambições “explicativas”. “Explicações” é precisamente o título de um dos poemas curtos desta primeira parte, poema que nos ajuda a perceber como o catolicismo enquanto “forma de vida” pode conviver com um cepticismo primordial: “Explicador, / explica-me devagar /as coisas vertiginosas. // Por exemplo, / o que é explicar”.

A segunda parte do livro tem talvez o seu momento decisivo em “Ao meu dedo mínimo”, poema no qual uma tremura no dedo mindinho anuncia um tempo em que o dedo terá “enfim uma real utilidade: um consumível / nas prateleiras da mercearia do tempo, / esperando a [s]ua vez de ser pão”. O poema que abre esta segunda parte, “A única diferença”, diz-nos, de modo congruente com este “devir pão”, do triunfo final do inumano na forma da “perda do lugar”: “A única verdadeira diferença / entre vida e morte é que, quando estás morto, / te é indiferente o lugar onde te encontras”. Se a única diferença é a indiferença póstuma ao lugar, isso explica porventura a omnipresença do animal na segunda parte do livro, na forma de um fabulário que nos devolve vermes, cães, ratos, rãs, toupeiras, serpentários, substituindo a referência a Régio da primeira parte pela revisitação dos “Bichos” de Torga. Descontando o didactismo incontido de “Uma toupeira na calçada”, um dos eternos perigos da fábula, são poemas maiores, anunciados contudo por “Vaqueiro”, da primeira parte, poema em que a contiguidade perfeita do humano e do animal na figura do vaqueiro que se não é - “Eu não sou, fique claro, algum vaqueiro, / desses que se dão bem com o cheiro da bosta” - se lamenta, com ajuda de interjeição enfática: “Não sou. Mas, caramba, umas vezes por outras / bem gostava de ser”. O animal, resumamos, «“xiste para o lugar” na natureza; o homem, porém, produz o lugar afastando-se dela. O vaqueiro, enquanto contiguidade com o animal, é promessa (pouco convicta, admita-se) de reconquista de um sentido não-produzido, mas dado, do lugar. Podemos chamar-lhe, em alternativa, destino, como aprendemos em “O que diz o rato”: “Tenho um destino. Nasci / para roer o silêncio - e vou roê-lo / metodicamente // até que um dia se invertam os papéis / e seja o silêncio a roer-me a mim”. Ou podemos, menos metafisicamente, chamar-lhe cobra d''água, como nos diz a rã que, lentamente devorada, assistirá à deglutição de si mesma “ao vivo”: “Há uma cobra d''água algures à minha espera” (p. 66). Ou podemos, recorrendo a “Túnel”, último poema do livro e elegia pela perda da luz, terminar com os dois versos que fecham para todos os efeitos livro e vida, prometendo um lugar que espera por nós: “Mas os tempos mudaram / e já vejo túnel ao fundo da luz”.

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