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Minas, mineiros e guerras: as "corridas ao volfrâmio"

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Salazar no seu gabinete DANIEL ROCHA

O sector mineiro, que está agora a atrair a atenção dos investidores estrangeiros, foi muito importante para o país durante a II Guerra Mundial. Mas foram três as corridas ao volfrâmio do século XX e cada uma delas correspondeu a um conflito internacional

Neste início do século XXI, sofrendo as consequências de uma crise estrutural e tendencialmente global, os portugueses, tal como os cidadãos de muitos outros países desenvolvidos ou de desenvolvimento intermédio, podem constatar a escala atingida pelo processo de desindustrialização e, mesmo, de desmaterialização - ou de financiarização - da(s) respectiva(s) economia(s).

Ao contrário do sucedido no século XIX e nos três primeiros quartéis do século XX, nas últimas décadas a noção de "progresso" parecia corresponder ao encerramento ou à deslocalização de empresas dos sectores primário e secundário. Destaca-se, nesta evolução, a indústria mineira, suposto arquétipo de actividade geradora de "efeitos secundários" negativos em termos de doenças profissionais e de desequilíbrios ambientais, de estruturas sociais marcadas pela "luta de classes".

Devendo Portugal ser classificado como um Estado-Nação semiperiférico (com uma economia e com relações sociais simultaneamente arcaicas e competitivas), os séculos XIX e XX foram marcados por debates significativos acerca das virtualidades ou desvantagens, da viabilidade ou da impossibilidade da industrialização ou, em termos mais gerais, da modernização.

Nesses confrontos ideológicos, justifica-se salientar os posicionamentos face ao sector mineiro. Em causa estariam, entre outras questões, o conhecimento e o aproveitamento dos recursos endógenos, a protecção ou a internacionalização da nossa economia, a especialização na exportação de matérias-primas ou de bens transformados, a poluição e os acidentes/doenças profissionais.

As três guerras

Quanto à indústria mineira, o sub-universo do volfrâmio (ou tungsténio) assumiu alguma especificidade. Nos períodos de "normalidade", recessão ou crise, tratou-se de um sector de dimensão relativamente escassa, limitando-se a um pequeno número de empresas e de explorações. Em sentido oposto, as conjunturas de crescimento - por vezes exponencial - coincidiram com os conflitos militares de dimensão mundial. Aquando da Primeira Grande Guerra (1914-1918), da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e da Guerra da Coreia (1950-1953), verificaram-se verdadeiras "corridas ao volfrâmio" - ou ao "ouro negro". Foram situações pontuais de acumulação de riqueza à escala local/regional e nacional, reforço das implicações político-diplomáticas e militares daquele "metal estratégico", potenciação dos riscos quanto aos acidentes e às doenças profissionais (veja-se o exemplo da silicose).

Se o sub-universo do tungsténio integrou, essencialmente, duas explorações de grande dimensão - o Couto Mineiro da Panasqueira (distritos de Castelo Branco e Coimbra) e o Couto Mineiro da Borralha (distritos de Vila Real e Braga) -, outros sectores alcançaram protagonismo por intermédio de concessões de dimensão industrial como S. Domingos, Aljustrel e Lousal (cobre e enxofre, distritos de Beja e Setúbal), S. Pedro da Cova, Pejão e Cabo Mondego (carvão, distritos do Porto, Aveiro e Coimbra), Gaia (estanho, distrito de Castelo Branco), Braçal e Malhada (chumbo, distrito de Aveiro).

Excepção feita ao sub-universo do carvão - não concorrencial devido à baixa qualidade dos jazigos nacionais daquele minério não metálico -, a generalidade das maiores minas portuguesas acabou por ser explorada por empresas de outros países, antes de mais o Reino Unido e a França, a Bélgica e Espanha, os EUA e a Alemanha. Daqui resultou que foram estrangeiros grande parte dos capitais e do know how organizativo, da tecnologia e dos técnicos superiores, do controlo de processos de decisão sobre, nomeadamente, os circuitos de comercialização e de transformação industrial, os níveis de investimento e o destino a atribuir aos lucros obtidos.

Inversamente, pelo menos até ao fim da década de 1960/início dos anos 1970, os baixos salários e a quase ausência de "regalias sociais" da mão-de-obra nacional ("chefias intermédias" e trabalhadores) constituíram uma "vantagem relativa" - um "factor de competitividade" -, quer para as minas industriais, quer para as explorações artesanais. Nesse mesmo sentido estariam, por um lado, a capacidade de adaptação e a subalternidade dos engenheiros portugueses; por outro, a precariedade dos controlos ambientais e em termos de higiene e segurança no trabalho.

Regressando à caracterização do universo do volfrâmio português nas três situações de conflito militar generalizado ocorridas - ou quase verificadas - ao longo do século XX, é operatório considerar que se assistiu sempre a um aumento "artificial" da procura, dos preços e da oferta de concentrados de tungsténio dada a importância dos mesmos para a produção de munições, blindagens e veículos ou máquinas de escavação ou corte.

Esse conhecimento exponencial implicou a presença acrescida entre nós de estruturas dos aparelhos de Estado e de empresas dos países beligerantes; o reforço, tanto das actividades económicas "informais" e ilegais, como da capacidade de acumulação de riqueza e de acesso a bens de consumo e a serviços escassos em situação de economia de guerra.

Ao focalizarmos a atenção nas especificidades de cada uma daquelas conjunturas, dir-se-ia que durante a Segunda Guerra Mundial o "boom do volfrâmio" atingiu patamares significativamente mais elevados do que nos períodos da Primeira Grande Guerra e da Guerra da Coreia.

Para além da dimensão do conflito, contribuíram para uma tal escalada a neutralidade mantida por Portugal de 1939 a 1945, bem como a opção do Estado Novo de consolidar as relações político-diplomáticas e económico-financeiras, quer com Londres e Washington, quer com Berlim e Roma. Foram ainda relevantes a contiguidade territorial de Espanha e Portugal relativamente à Alemanha nacional-socialista depois da rendição da França (Junho de 1940) e a dependência do Terceiro Reich face ao volfrâmio da Península Ibérica no seguimento da invasão da URSS (Junho de 1941).

Por sua vez, na Primeira Grande Guerra o nosso país foi não beligerante [apoiava um dos blocos mas não participava no conflito] entre 1914 e 1916 e beligerante de 1916 a 1918. Na Guerra da Coreia, era parte do "Mundo Ocidental" no âmbito da "Guerra Fria". Ou seja, em ambos os casos Portugal utilizou as suas reservas de tungsténio para tentar atenuar as dificuldades económicas e financeiras mas, essencialmente, para apoiar o esforço bélico dos blocos de países que integrava.

Com a participação das representações diplomáticas da Grã-Bretanha e da França ou dos EUA e do Reino Unido, os governos da Primeira República e do Estado Novo limitaram, então, a euforia em torno do volfrâmio regulando a procura e garantindo o monopólio aquisitivo a uma das alianças em confronto.

Uma situação diferente verificou-se antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Com início em 1934 - um ano depois da implantação da ditadura nacional-socialista na Alemanha - mas, sobretudo, durante grande parte da Segunda Guerra Mundial (até Junho de 1944), britânicos e germânicos competiram pelo controlo do tungsténio luso. Mau grado a superioridade do Reino Unido, a Alemanha conseguiu implantar-se no sector mineiro português e adquirir quantidades relevantes de concentrados.

Assistiu-se, no decorrer da guerra económica, à compra e à criação de empresas, de concessões e de "separadoras". Verificou-se também a contratação de engenheiros e de outros técnicos, bem como ao aliciamento de funcionários públicos e a contratação massiva de serviços de transporte. Registou-se a fuga da mão-de-obra da agricultura e o multiplicar das "explorações informais". Aumentaram ainda os roubos e o contrabando (interno e externo; oficioso, organizado e artesanal). Por ausência de capacidade de intervenção ou por "cálculo económico e financeiro", visando satisfazer interesses nacionais e/ou de estados beligerantes, o regime chefiado por António de Oliveira Salazar não alterou significativamente o ambiente de "febre especulativa" e de "rivalidade internacional" que se foi implantando.

Os resultados para o país

Sobre os resultados para Portugal desta e, em menor grau, das outras duas "corridas ao volfrâmio" no curto e médio prazos, foi e continua a ser frequente centrar a atenção nas manifestações superficiais de "euforia consumista" e de subversão temporária das hierarquias sociais tradicionais por parte do "volframista novo-rico" (comerciante ou agricultor-mineiro).

Ocorreu, no entanto, também, a redução do crónico saldo negativo da nossa balança comercial e a obtenção de toneladas de ouro (algum do qual fora antes roubado pelo Terceiro Reich) e o reforço da capacidade de negociação externa por parte do Governo luso. Por outro lado, registou-se o aumento do número de crianças e de jovens que pode realizar uma escolaridade mais prolongada e uma melhoria das condições de vida para muitas famílias de "camponeses pluriactivos" dos distritos de Coimbra e Castelo Branco, Aveiro, Viseu e Guarda, Porto e Vila Real, Viana do Castelo, Braga e Bragança (à semelhança do sucedido devido às remessas dos emigrantes). Houve um atenuar temporário, para parte das "camadas populares", da pobreza estrutural e das consequências mais negativas de uma governação pouco eficaz e socialmente injusta da economia de guerra.

Tentando esboçar um balanço no longo prazo da mineração do tungsténio entre nós - começada em 1871 e concretizada até hoje, nomeadamente no Couto Mineiro da Panasqueira - e, de forma mais específica, dos três surtos de "corrida ao ouro negro", será difícil não concluir que os resultados acabam por ser pouco expressivos. Fora das etapas de conflito militar generalizado (1914-1918, 1939-1945, 1950-1953), os postos de trabalho, a quantidade de concentrados e a riqueza gerados mantiveram-se não decisivos. As regiões do interior Centro e Norte de Portugal continental onde se situam os jazigos permaneceram menos desenvolvidas. Não se verificou a criação de empresas especializadas na produção de mercadorias intermédias ou finais que incorporassem volfrâmio.

No conjunto dos factores explicativos desta evolução, realce para a menor dimensão das reservas nacionais de tungsténio se comparadas com as da China, URSS/Rússia, EUA, Coreias e Birmânia (os maiores produtores mundiais) e para a ausência de investimentos estruturantes de capitais privados portugueses e de uma estratégia consistente por parte do Estado. Não houve capacidade de substituir a exportação de matérias-primas semitransformadas por bens industriais de alto valor acrescentado. Finalmente, a mão-de-obra predominante utilizada era pouco qualificada e mal remunerada, sem direito a modalidades abrangentes de "protecção sociolaboral", muito afectada por acidentes e doenças profissionais.

Historiador, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

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