Manuel Jorge Marmelo para reescrever a história oral da literatura

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Paulo Pimenta

“Uma Mentira Mil Vezes Repetida” é um meta-romance de muitos romances: um homem percorre autocarros carregando um gigantesco livro inexistente, acerca do qual inventa as mais mirabolantes histórias. Esse homem, diz Manuel Jorge Marmelo, é a reencarnação da história oral da literatura

Há de tudo, nos transportes públicos portugueses: cegos que tocam gaita para ganhar uns cobres, velhos que dizem ter uma placa de metal na cabeça por causa dos estilhaços do Ultramar, raparigas fugidas de instituições mentais que gritam um redondo "Fuôdaaaa-se" a cada dois minutos (comboio da CP, Aveiro-Porto, Setembro de 1996), velhas a tomar comprimidos para doenças que se dá licença passo a explicar, tolinhos, muitos tolinhos.

Pode até existir um homem que percorra autocarros com um livro de dimensão considerável nas mãos, determinado em contar a toda a gente a verdadeira história do génio que escreveu o livro - que, no dizer do dono do calhamaço, é supostamente uma obra-prima obscura da qual já poucos exemplares restam.

E podia muito bem dar-se que o mencionado livro fosse um falso livro, uma invenção da imaginação do passageiro, um objecto que nas suas páginas contém uma amálgama de textos aleatoriamente colhidos da net e de múltiplas fontes, devidamente coligidos e encadernados por forma a que o falso livro pareça um livro verdadeiro.

Pelo menos é o que acontece em "Uma Mentira Mil Vezes Repetida", de Manuel Jorge Marmelo, escritor portuense nascido em 1971 e que publica há 15 anos.

Esse homem que precisa compulsivamente de encontrar interlocutores para as histórias que inventa para o livro que imaginou "é uma abstracção" mas, que ninguém duvide, "tipos assim andam por aí".

"Há pessoas que têm comportamentos parecidos no autocarro", acrescenta Marmelo. Ele deve saber: ao fim e ao cabo, uma boa parte do seu blogue, Teatro Anatómico (teatro-anatomico.blogspot.com), é ocupada com as "Crónicas do Autocarro", série que já vai no nonagésimo texto.

Porque raio haveria alguém de transportar um calhamaço de 1200 páginas, compostas por textos sem ligação entre si, encadernadas e com uma bonita capa onde título e autor estão devidamente designados?

No mundo fora do Júlio de Matos não há uma resposta óbvia, mas a própria personagem oferece algumas respostas: tem sede de reconhecimento mas não está disposta a escrever uma obra-prima. A sua esperança é que a história desse livro maldito chegue a um qualquer estudante de literatura, este se lance em busca da obra-prima e encontre sucessivas descrições do sujeito que carregava o calhamaço pelos autocarros, partilhando com os outros a sua imensa sabedoria acerca do autor desse pedaço misterioso de génio.

"Não me interessava tanto que esta personagem fosse um mentiroso", explicou-nos Manuel Jorge Marmelo em entrevista telefónica, "antes que surgisse como um solitário que precisasse de falar. Mais que a celebridade", adianta, "acho que o ele procura é companhia".

Convém esclarecer o que "companhia" significa neste contexto. Se é óbvio que há uma dimensão de desespero a eivar o comportamento do portador do livro, não há propriamente uma procura do outro no sentido de o conhecer: "Ele não está preocupado em interagir com as pessoas, antes em inventar histórias mesmo quando as pessoas não se interessam muito pelo livro".

Posto de forma mais directa: "Há um certo autismo neste narrador", qualidade (por assim dizer) "necessária" para que Marmelo atingisse aquilo a que se propôs: tornar o narrador num "reencarnação da história oral da literatura". Daí que fosse "fundamental" enfiar o protagonista "dentro de um autocarro a contar histórias".

Essa ideia do protagonista enquanto "reencarnação da história oral da literatura" pode fixar-se numa espécie de plano ontológico, de visão de Marmelo sobre aquilo que é a literatura, a sua função, a sua valoração: "A pulsão que nos leva hoje a escrever é a mesma que levava os homens das cavernas a fazer gravuras nas rochas - contar histórias. Foi um pouco essa reflexão que quis deixar em aberto", acrescenta. "É um statement meu: a crença de que a literatura não tem de estar escrita para ser literatura".

E se uma zebra...

Quando imaginou o livro tinha apenas a ideia para a personagem - que aliás se descreve a si mesma no segundo capítulo. Só mais tarde é que veio o clique que espoletou o resto da obra, um clique, no mínimo, caricato.

"Uma vez por mês vou correr para a Foz [Porto]. Um dia ia a ouvir no iPOD uma música da Cesária Évora que se chama ‘Zebra' e pensei: ‘E se uma zebra não fosse uma zebra mas sim um ser humano com pêlo listado de preto e branco?'"

O que tem agora a zebra a ver com o livro que não existe? Bem, esse é o, por assim dizer, ingrediente secreto de "Uma Mentira Mil Vezes Repetida": está repleto de milhentas histórias, as milhentas histórias que o narrador inventa sobre a obra-prima. A do homem-zebra é apenas uma delas - e é a que abre o livro.

É uma magnífica história, diga-se: uma família instala-se num qualquer pueblo deserto, cultiva cacau, chama uns negros para trabalharem a terra, há uma traição de uma mulher (que é expulsa dali), e mais tarde nasce um suposto filho da família que é um cruzamento de homem com zebra.

Esta história, é-nos dito logo ao abrir de "Uma Mentira Mil Vezes Repetida", foi escrita por Marcos Sacatepequez - ou melhor, segundo Oscar Shindinski diz que foi Marcos Sacatepequez que a escreveu.

Oscar Shindinski é o autor da obra-prima que o narrador transporta. Segundo mais uma das invenções deste, Shindinski estaria convencido de que estava "amaldiçoado pelo cadáver errante de Marcos Sacatepequez". Claro que não existe Marcos Sacatepequez algum (muito menos Oscar Shindinski) e que a história do homem-zebra também é uma invenção do narrador.

"A história do homem-zebra acabou por ser das últimas coisas que escrevi. Nas primeiras versões estava mais à frente. Lúcia Melo, a editora, é que me sugeriu passar para o início uma das histórias que a personagem cria, para ter uma abertura mais forte".

O livro, contudo, não é um retrato de personagem. Não se estuda o narrador em qualquer tipo de profundidade, nem se procura - deliberadamente, segundo Marmelo - outra densidade psicológica que a que o leitor lhe possa atribuir. O que há é uma acumulação delirante das múltiplas inventonas do homem que imaginou o escritor húngaro Oscar Shindinski e o seu "Cidade Conquistada".

"Mais que preocupar-me com o personagem, preocupei-me com as histórias que poderia meter dentro daquele livro", conta Marmelo.

Houve ainda mais uma razão, de ordem técnica, para o autor se centrar nas histórias do personagem e não neste: "a partir do momento em que adopto a primeira pessoa não era nada fácil pôr a personagem a falar de si própria." Confessa que a dada altura teve "a percepção que aquilo poderia arrastar-se até ao infinito".

É importante, para descodificar "Uma Mentira Mil Vezes Repetida", esse desdobramento borgesiano ao infinito: só assim se percebe que se trata de um livro assumidamente "aberto".

"Sempre me fascinaram livros como o ‘Se Numa Noite de Inverno Um Viajante', do Calvino, em que cada história é um primeiro capítulo de um romance, e o leitor é que tem de dar sentido ao conjunto. Agrada-me essa ideia de literatura enquanto algo que abre mundos". No fundo Marmelo está a devolver em literatura o que a literatura lhe ofereceu, já que, segundo diz, nunca esperou "que os livros [lhe] trouxessem respostas. A relação com os livros funciona mais como uma espécie de diálogo - dão-me pistas para eu encontrar as minhas respostas".

Em "Uma Mentira Mil Vezes Repetida" também não encontrarão respostas. Apenas questões sobre o valor de uma palavra, a importância de uma coisa chamada narrativa.

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