Cumbre Vieja O apocalipse tem um nome

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A recente crise vulcânica nas Canárias passou sem deixar grande mossa, mas o arquipélago espanhol no Atlântico está referenciado como epicentro de um potencial desastre de consequências catastróficas. Não em Hierro, mas na ilha de La Palma. A derrocada do flanco do vulcão Cumbre Vieja é o cenário mais plausível de um megatsunami no Atlântico. Tem todos os ingredientes de um filme-catástrofe. Mas há quem duvide

Quando, a 29 de Setembro, o PÚBLICO deu conta dos alertas das autoridades espanholas sobre a situação na ilha de Hierro, Canárias, onde se poderia registar uma erupção vulcânica, o primeiro leitor a comentar a notícia deixou uma mensagem de alívio. "Estaria mais preocupado se fosse o Cumbre Vieja...", escreveu Pedro Afonso, da Amadora. E tem razão. O velho vulcão da ilha de La Palma ganhou notoriedade em 2005, quando estudos de Stephen N. Ward e Simon Day foram tratados num documentário da BBC2. Está aqui, dizem os dois cientistas, o maior risco potencial de um megatsunami no Atlântico.

O Cumbre Vieja (1949m) é um vulcão activo na ilha de La Palma - as suas erupções mais recentes datam de 1470, 1585, 1646, 1677, 1712, 1949 e 1971. Isto, por si só, não seria particularmente assustador, mas o problema é que os cientistas chegaram à conclusão de que o cone vulcânico é particularmente instável e existe a possibilidade de, num cenário de erupção ou sismo, uma enorme porção da montanha deslizar para o mar.

Se isso acontecer, as consequências poderão ser catastróficas. O colapso deste gigantesco bloco, com cerca de 500 km3 (500 mil milhões de toneladas; na prática, toda a vertente Sudoeste da ilha), provocaria aquilo a que se convencionou chamar um megatsunami, um fenómeno em tudo idêntico aos maremotos causados pelos sismos, mas que se fica a dever a um deslizamento de terras que empurra a água à sua frente (ou, nos filmes, à queda de um gigantesco asteróide...). Particularmente preocupante é a consciência de que estes acontecimentos geram ondas muito maiores do que as causadas por sismos.

Os modelos matemáticos são aterrorizadores. A onda gerada pelo colapso do Cumbre Vieja afectaria todo o Atlântico Norte e uma parte do Sul. Em cerca de uma hora, vagas monumentais de mais de 100 metros varreriam a costa da Mauritânia, no Oeste do continente africano e o arquipélago da Madeira poderia ser atingido por paredes de água com mais de 40 metros de altura. Qualquer coisa à volta de três horas depois do colapso, o território continental português veria chegar poderosas ondas de dez metros.

A simulação trabalhada por Ward e Day mostra que o fluxo principal da derrocada seria na direcção Sudoeste, o que criaria maior turbulência nessa direcção. Se Portugal e o resto da costa ocidental europeia se veriam perante um cenário de devastação (as ondas do recente tsunami no Japão não atingiram esse valor de dez metros...), piores são as perspectivas para a costa e o continente africano.

Um extenso arco de devastação, que abrangeria desde a costa Nordeste do Brasil até à Terra Nova, no Canadá, atingiria o continente sob a forma de uma sucessão de vagas com alturas que poderiam chegar aos 25 metros (embora também se fale de 30 a 60 metros) e entrariam por terra até 25km para o interior. Basta imaginar a ilha de Manhattan, em Nova Iorque, e percebemos como estes números são assustadores...

Levantam-se dúvidas

É o cenário perfeito para um filme-catástrofe: numa bela ilha, uma erupção vulcânica provoca um colapso da caldeira e o mundo ocidental enfrenta o Armagedão... Bom, ninguém garante que tal não venha a acontecer, mas há quem relativize a ameaça do Cumbre Vieja e esgrima com argumentos científicos. O primeiro é que os tsunamis provocados por deslizamento de terras ou colapso de montanhas sempre mostraram tendência para terem um raio de acção muito mais curto do que os provocados por sismos.

Maria Ana Baptista, especialista em tsunamis e professora do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, não tem dúvidas de que o colapso de uma caldeira vulcânica "origina ondas muito altas mas com um raio de acção curto". É, por isso, convicção sua que, "a haver um grande tsunami no Atlântico, ele será gerado por um sismo, provavelmente de magnitude 8.5 [na escala de Richter] ou superior". E os exemplos do passado falam a seu favor.

Quando, em 1883, a ilha de Cracatoa, na Indonésia, foi pulverizada do mapa por uma explosão vulcânica que ainda hoje é classificada como o fenómeno mais ruidoso da história recente do planeta (ouviu-se a mais de 4800 quilómetros de distância), gerou-se um megatsunami que varreu as ilhas circundantes, matando dezenas de milhares de pessoas. Mas não afectou outras massas de terra mais distantes. De forma idêntica, o colapso do vulcão de Santorini, no Mediterrâneo, cerca de 1600 a.C., provocou o caos no Mediterrâneo Oriental (pode ter sido a causa da extinção da cultura minóica, em Creta), mas não provocou danos catastróficos noutras paragens.

Maria Ana Baptista explica porquê. "O último grande tsunami no Atlântico foi em 1755, associado ao sismo de Lisboa. Para criar uma vaga com o comprimento de onda necessário para chegar a longas distâncias, é necessária uma grande deformação do terreno. O sismo de 2004 [que deu origem ao tsunami no Índico] tinha 1200km de comprimento. Santorini era uma cratera de 35km..." Ou seja, os sismos de grande magnitude geram ondas muito compridas, que demoram mais a dissipar-se. Os desabamentos ou colapsos de vulcões criam uma onda enorme, mas com um raio de acção bem mais curto.

Será? Dúvidas não restam de que as maiores ondas de tsunami são as geradas por movimentos de terras que envolvem a força da gravidade. No Alasca, a 9 de Julho de 1958, um sismo causou a derrocada de uma encosta para as águas da baía de Lituya, um braço de água estreito e comprido. Os 30 milhões de metros cúbicos de terra e rocha que caíram empurraram a água à sua frente, criando uma onda cataclísmica que atingiu, em alguns pontos, os 524 metros de altura - espantosamente, à saída da baía, dois dos três barcos de pesca que se encontravam na rota da vaga gigantesca sobreviveram à catástrofe.

Sistemas de aviso

Não há registo, nos tempos recentes, de uma vaga tão alta como a de Lituya. Se tivesse acontecido numa zona densamente povoada, teria sido cataclísmica. Mas desfez-se ao chegar ao mar. É verdade que o colapso anunciado do Cumbre Vieja envolveria um volume de terras mais de 16 vezes superior (500 km3, contra 30 km3), mas o efeito far-se-ia sentir numa massa de água incomensuravelmente superior à da pequena baía do Alasca.

Tudo isto foi, naturalmente, tido em conta por Ward e Day na sua simulação. E não estão sozinhos. Bill McGuire, director do Centro de Pesquisa de Riscos Benfield Greieg, do University College de Londres, também está entre os que não falam de "se", mas de "quando" o Cumbre Vieja colapsar. Lembrando que se está a falar de uma massa de terra semelhante à da ilha de Man, McGuire fala de vagas viajando a mais de 900km/h pelo Atlântico.

A erupção de 1949 no vulcão das Canárias chamou a atenção dos cientistas porque, na altura, o flanco Oeste do vulcão afundou-se quatro metros no oceano Atlântico. Isto alertou para o risco de colapso de toda a vertente e investigações posteriores confirmaram que a falha é contínua e instável. Citado pelo diário britânico The Guardian, McGuire garante que uma próxima erupção atirará todo o flanco ocidental do vulcão montanha abaixo e que a queda "não vai levar mais de 90 segundos".

Mas essa é outra questão. Será que o Cumbre Vieja vai desabar de uma só vez? Ou o movimento contínuo de deslizamento continuará a registar-se a ritmo lento (embora geologicamente ao sprint), sem provocar agitação marítima? E será que um colapso catastrófico poderá acontecer apenas em caso de erupção? Um grande sismo no Atlântico não poderia ter o mesmo efeito?

Em qualquer dos casos, ninguém pode ficar completamente tranquilo com uma ameaça destas no "quintal das traseiras". "Uma onda de dez metros seria catastrófica", sintetiza Maria Ana Baptista. "Mas com três horas de aviso..." Essa é a boa notícia: o Cumbre Vieja está a ser monitorizado a tempo inteiro e há sistemas de alerta sísmico em funcionamento por todo o Atlântico.

Já os tsunamis não têm ainda uma estrutura dedicada. "O sistema que está a ser implementado para o Atlântico, à semelhança dos existentes noutras bacias oceânicas, destina-se principalmente à detecção de tsunamis desencadeados por sismos cuja magnitude tem potencial para gerar tsunamis", explica, numa rápida resposta por e-mail, Teresa Ferreira, presidente da Direcção do CIVISA - Centro de Informação e Vigilância Sismovulcânica dos Açores. São, de qualquer forma, muito pouco frequentes nestas paragens - para além do de 1755, regista-se apenas outro tsunami, em 1918, em Porto Rico, mas de efeitos apenas locais.

As más notícias são duas. A primeira tem 300 mil anos - registos fósseis mostram que uma derrocada que se supõe ter tido origem na ilha de Hierro, Canárias, provocou um megatsunami que atravessou o Atlântico e depositou rochedos do tamanho de casas várias centenas de metros no interior do continente norte-americano (abalando a teoria de que este tipo de ocorrência tem um raio de acção limitado). A segunda é que, apesar de os holofotes estarem apontados para La Palma, uma tragédia vulcânica deste tipo pode acontecer em qualquer ilha vulcânica. Açores, Madeira, Cabo Verde...

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