Tarifas de electricidade e co-geração

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Para que a co-geração realize o potencial que a justifica é necessário que o calor seja integralmente utilizado

Depois da subida do IVA para 23%, na electricidade e no gás, a noticia do Diário Económico de que a tarifa-base iria aumentar 30%, devido principalmente aos mais de 600 milhões de euros a pagar à grande co-geração, chamou finalmente as atenções para os enormes subsídios às papeleiras, Portucel, Altri, etc., Galp e inúmeros outros grandes consumidores. Estes subsídios são feitos à custa do aumento das tarifas e englobados sob a sigla de CIEG (Custos de Interesse Económico Geral), cuja fixação depende do governo e não da ERSE.

O CIEG tem várias parcelas, mas a mais escandalosa e das mais pesadas, a co-geração, tem passado praticamente (ou intencionalmente) despercebida, nomeadamente aos promotores, activistas e contraditores do Manifesto de Política Energética.

Actualmente os CIEG representam cerca de 40% da tarifa-base. Algumas das parcelas iniciais dos CIEG foram legítimas e justificadas, como as que se destinaram a promover o desenvolvimento tecnológico de energias renováveis, como a eólica, criando-lhes um mercado. Mas nestas, como em muitas das outras, abriu-se a porta para subverter o espírito e os princípios que as legitimavam. A grande co-geração é um caso exemplar.

A co-geração é uma tecnologia madura, que existe há dezenas de anos e foi rebaptizada com este nome pelo Presidente Jimmy Carter, no âmbito das medidas ditadas pela crise energética dos anos 70. A sua justificação técnica decorre do facto de se utilizarem combustíveis (fosseis ou nucleares) para produção de electricidade e de ser fisicamente impossível (2.ªLei da Termodinâmica) converter integralmente em electricidade o calor libertado. Actualmente, as térmicas clássicas, ou nucleares, não aproveitam mais de 35%. As mais modernas centrais térmicas de ciclo combinado podem ultrapassar os 60%. Simultaneamente, 70 a 80% de todo o consumo nacional de energia é feito sob a forma de calor, de baixa temperatura, seja em aquecimento doméstico ou em processos industriais. Face a esta realidade, faz todo o sentido aproveitar para aquecimento o máximo do calor rejeitado na produção de electricidade. Este aproveitamento reveste-se de inúmeras formas, uma das mais antigas e conhecidas sendo o aquecimento urbano nos países nórdicos e da Europa central.

A co-geração consiste neste aproveitamento do calor que a produção de electricidade rejeitou. Globalmente, a energia contida no combustível pode ser utilizada acima dos 80%. Em termos nacionais, uma co-geração dimensionada correctamente traduz-se numa significativa poupança de energia e justifica-se por isso a sua vigorosa promoção. Todavia, se a concepção técnica foi incorrecta e a exploração é inadequada, os benefícios podem transformar-se rapidamente em prejuízos vultosos para a comunidade.

Para que a co-geração realize o potencial que a justifica é necessário que o calor seja integralmente utilizado. Numa refinaria, numa papeleira, etc., o calor (vapor de processo...) é a variável fundamental e a solução técnica escolhida é aquela que maximiza a produção de electricidade para a mesma quantidade de calor utilizado. Todavia, devido às variações típicas no ciclo de consumo do calor, temos situações em que há excesso de produção de electricidade. O destino natural deste excesso temporário de produção é a rede nacional. A EDP opôs-se a que tal fosse permitido. O prejuízo para a economia nacional era evidente e as actas e declarações de voto no Plano Energético Nacional (PEN-1980) são expressivas a esse respeito. Só com Mira Amaral como ministro a co-geração foi legalmente autorizada e promovida.

A questão fundamental na co-geração é a eficiência energética global que se consegue se correctamente implementada. Daí resulta uma vantagem económica para quem a utiliza devidamente. Tanto as papeleiras como a Galp utilizavam co-geração muito antes de ser permitido vender à rede o excesso de produção. Faziam-no por razões económicas. Permitir-lhes vender à rede o excesso de produção foi vantajoso para eles e sê-lo-ia para a economia nacional se o custo de produção desta electricidade fosse igual ou inferior ao obtido nas centrais da rede nacional de electricidade. Foi com este conceito (full avoided cost) que a co-geração foi promovida por Carter. Entre nós, optou-se por garantir à electricidade assim produzida um preço muito acima da tarifa normal. Como seria de esperar, esta decisão teve como consequência imediata que os co-geradores deixassem de consumir a electricidade por si produzida, porque lhes era muito mais vantajoso adquirir na rede e à tarifa comum toda a electricidade que consumiam e simultaneamente vender à mesma rede, a uma tarifa bem superior, toda a que produziam. Este sobrecusto é suportado pelos consumidores em geral e contribui para o famoso défice tarifário.

O que se passou de seguida com os co-geradores foi o que se separava, ou seja, hiperdimensionaram a co-geração, desperdiçando o calor em excesso, porque o preço pago pela electricidade produzida compensava todos os atropelos. Finalmente, chegamos ao escândalo de haver instalações chamadas de co-geração que se destinam exclusivamente à produção e venda da electricidade. Ou seja, em vez de aumentar, a eficiência energética global diminuiu e a poluição aumentou!

O absurdo desta situação não escapou à troika, que impôs a sua revisão. De facto, se não for rapidamente revista, teremos em 2012 o sobrecusto dos mais de 600 milhões de euros nos CIEG, e valores crescentes nos anos seguintes. Em meu entender, a completa subversão, ética e técnica, dos princípios que legitimaram o apoio à co-geração justificam inteiramente o desaparecimento de qualquer subsídio. O facto de poderem entregar a qualquer hora e ao preço normal da tarifa a energia que produzem já é, em si mesmo, um considerável beneficio.

Nos casos em que a co-geração se justifica, e são muitos os casos de pequenas instalações, deverá apoiar-se o investimento, mas nunca sob a forma de tarifas especiais.

Espero que este Governo ataque de frente o problema e não reinvente mais uma das múltiplas artimanhas em que se foi pródigo, sempre com a consequência final de agravar os problemas no futuro, para não beliscar agora alguns dos grandes interesses instalados. Professor catedrático do IST (jjdd@ist.utl.pt)

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