Um beijo na boca do público

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José Castelo Branco, RUI GAUDÊNCIO

Desde que entrou na "Quinta das Celebridades", é uma das figuras mais mediáticas da televisão portuguesa. Com José Castelo Branco, discussões sobre género e identidade sexual entraram no "mainstream" nacional, em pleno horário nobre. Ele (ela?) orgulha-se de ter ajudado a "educar" o grande público. Isabel Coutinho

Quando José Castelo Branco entrou pela casa dos portugueses a arrastar mais de uma dezena de malas para tratar dos animais e da horta no "rurality show" da TVI "Quinta das Celebridades", em 2004, Portugal percebeu que nada ia ser como dantes. Durante o programa, Castelo Branco calçou saltos altos e recuperou a Tatiana Waleska Romanov dos anos 80 - quando se vestia de mulher e era uma figura conhecida da noite "gay" lisboeta. O ex-"marchand", marido da criadora de jóias norte-americana Betty Graffstein, transformou-se numa das figuras mais mediáticas da televisão portuguesa. Saiu da Herdade da Barracha na noite da passagem de ano como vencedor da "Quinta das Celebridades" e, num raro momento televisivo, recebeu um beijo na boca do actor brasileiro Alexandre Frota, que ficou em segundo lugar. Os anos passaram e Castelo Branco ainda faz subir audiências. Este ano, depois de "Perdidos na Tribo" - onde baralhou os nativos quanto ao seu género sexual -, voltará à televisão, em Setembro, num programa de que ainda não pode falar. As suas participações em programas como "Bon chic" (2005), "Primeira Companhia" (2006) e "Circo das Celebridades" (2006) trouxeram para o "mainstream" televisivo nacional, por vezes no horário nobre, questões de género e de identidade sexual. No sofá, a olhar para a televisão em família, e, no dia seguinte, nos cafés ou nos locais de trabalho, os portugueses passaram a tratar por "tu" assuntos em relação aos quais, mesmo não se dando conta, tinham preconceitos.

Na sua casa em Sintra, onde posou para as fotografias vestido "à homem", Castelo Branco diz que foi sempre a mesma pessoa. Quando se vestia de mulher no dia-a-dia dos anos 80, e quando, depois do primeiro casamento com Maria Arlene e do nascimento do seu filho Guilherme, voltou às roupas masculinas: "Aprendi no momento certo a viver como homem. Para mim foi sempre muito mais fácil viver exteriormente como mulher. Era uma forma de me defender. Passava na rua e não era arrasado".

Em cima de uma cómoda estão fotografias de várias épocas. Numa delas aparece na sua versão feminina actual, ao lado da mãe do "rapper" Puff Daddy e da actriz Whoopi Goldberg. "Você vê aqui fotografias minhas em que eu estou em macho. Quando o Guilherme cresceu, viu a imagem de um pai", diz. "Veja-me aqui a dançar no casamento do senhor D. Duarte, já numa fase mais andrógina. Mas aqui estava mais certinho. Olhe ali, com a Betty e com o Guilherme, certíssimo!"

Quase com 45 anos, José Castelo Branco sente-se bem no "boneco" que criou. "Se quiser chamar-lhe assim; eu não chamaria porque é a personagem que visto 24 horas, tanto de cara lavada como com um pequeno "make-up"." Não se vê nem como "drag queen", nem como travesti. "Longe de mim. Gosto muito de ser quem sou, sem medos, sem fantasmas. As pessoas têm de aprender - assim como eu - a libertar-se do divã do psiquiatra."

Do dia em que entrou na "Quinta das Celebridades" até ao recente "Perdidos na Tribo", os telespectadores foram vendo o lado feminino de José Castelo Branco cada vez mais presente. "Desde que me casei com a Betty fui-me libertando. Fui pondo mais "make up" porque me sinto melhor se estiver maquilhado. Toda a gente me diz: "Ai Zé, de cara lavada és lindíssimo, tens uma pele linda." Mas eu não me sinto bem. Sinto-me despido, sem defesas. Sinto-me muito mais protegido sob o véu da máscara."

Quando, na adolescência, chegou a Lisboa, vindo de África, e entrou no Colégio Valsassina, os outros alunos "punham-se aos gritos" quando passava nos corredores, "a arrasar". Só porque era diferente. "Sou aquilo que sou graças ao que passei. Em vez de estar a culpar o pai e a mãe, o periquito e a periquita, tenho é de pensar que bati com a cabeça, olhei em frente, suportei tudo e hoje sou um vencedor." Na sua carreira na televisão, tentou "acima de tudo" desmitificar. "A televisão é um meio de se educar ou de se deseducar. Eu tentei que todos os que vêem televisão começassem a aprender que as pessoas podem ser diferentes e têm todas os mesmos direitos."

Acredita que conseguiu alterar a mentalidade portuguesa e que desmitificou o que era quase depreciativo. "Quase todos os países latinos têm homofobia. Quando temos certezas sobre a nossa própria sexualidade, podemos ser ligeiros. Chego ao pé dos meus amigos e posso dar-lhes um beijo. Quando as pessoas são inseguras é que têm medo de haver alguma conotação. Têm medo do que está escondido nelas próprias."

É no palco que liberta a sua sensualidade. O "grande clímax" sente-o quando está em frente ao público. "Sinto que de todos os meus poros sai sensualidade, não sexualidade. Gosto muito do jogo da sedução, excita-me imenso, mas mais nada. Sensualidade não é sinónimo de libertinagem e depravação."

Paralelamente, investiu numa carreira de cantor. Fez espectáculos em Nova Iorque e está a percorrer o Norte de Portugal para promover o disco. "São horas a fotografar e a dar beijinhos. Mesmo os que vêm com uma atitude agressiva rendem-se. Se há pessoa que tem uma relação de beijo na boca com todo o público sou eu."

Nas passerelles internacionais, têm merecido destaque Lea T, a manequim transgénero brasileira que desfilou para Givenchy e foi entrevistada pela Oprah, e o modelo masculino Andrej Pejic, de 19 anos, às vezes homem e outras vezes mulher (desfilou para Jean-Paul Gaultier vestido de noiva, com véu e grinalda). Há meses, em Nova Iorque, Castelo Branco encerrou o desfile de Richie Rich: "O próprio Rod Stewart pôs-se de pé a aplaudir-me!".

Enquanto se maquilha na casa de banho, vai falando de si no masculino ("Perdi o meu lápis preto, fiquei furioso"). Mas quando atende o telefone passa ao feminino. "Sou uma misturada de tudo. Vou responder como respondi aos jornalistas espanhóis: "Tornei-me uma grande lésbica!" Porque a plenitude sexual só consegui atingi-la com uma mulher. Toda a minha vida tentei justificar, a mim próprio, que era homossexual. Talvez devido à violação de que fui vítima na infância e a um romance que tive aos 16 anos. Achava que estava apaixonadíssimo por uma pessoa do mesmo sexo mas, quando chegámos a vias de facto, repugnou-me totalmente e fugi a sete pés. Descobri a minha sexualidade aos 18 anos com a mãe do meu filho, com quem vivi e estive casado nove anos."Tudo começa, diz, pelo blues e pelo rock"n"roll: "O rock"n"roll de que gosto mais é espontâneo e não deve muito à técnica. Tem a ver com instinto, calor e suor". E quando se provocam as pessoas com música "primitiva e espontânea", elas respondem de acordo. Como aquela mulher em concerto dos WrayGunn que o beijou sem deixar tempo para qualquer reacção.

Há um cliché segundo o qual o palco "é o espaço onde tudo pode acontecer e normalmente acontece". Para Paulo Furtado, não é um cliché. "O palco tem a ver com morte, violência, sexo, poder e coragem. Se te abrires ao palco, todas essas coisas entram e tudo pode, efectivamente, acontecer". Desde os Tédio Boys que assim é. Um dos momentos icónicos da carreira da banda de Coimbra foi a actuação numa Queima das Fitas com os músicos ensopados em sangue e nus (à excepção dos frangos que lhes tapavam os genitais). "Aí, o corpo foi utilizado como arma de arremesso e não como objecto de desejo". Nos Tédio Boys, o palco onde tudo acontecia era utilizado como "espaço de transgressão". O sexo como o descobrimos depois em Furtado, é outra coisa.

Pensemos, por exemplo, no teledisco de "Naked blues". Corpos femininos, uma serpente, jogos de azar, whisky. Um bluesman amaldiçoado, livrando-se da pele pecaminosa quando despe toda a roupa e, nu, prossegue viagem. "Uso o nu de uma forma quase estilizada, diria mesmo assexuada". A nudez, explica, é "sobrevalorizada". "Andamos todos nus debaixo da roupa e não há tragédia nenhuma nisso". A tragédia é outra: a forma como o sexo, e em particular o corpo feminino, é hoje utilizado. "É usado de uma forma demasiado básica, unidimensional. [Na publicidade ou nos vídeos musicais] faz-me impressão ver a mulher como um pedaço de carne a abanar o rabo dentro de uns calções curtos". Não é por moralidade que o diz. É pelo básico da coisa.

Em "Naked blues" vê a história do que poderia ser uma família de sete pessoas - "não me interessa se as pessoas se casam com duas pessoas, se são um casal de cinco". Vê, e esse é um traço que atravessa o seu trabalho, a descontrução desse simplismo redutor - a ambiguidade do elemento masculino surge para "cortar com esse cliché do gajo que chega e tem quatro miúdas à espera".

Em "Femina", o último álbum, o desejo de desmontar enquadramentos de género está novamente presente: inadvertidamente ou não, Furtado, que surgiu nas fotos promocionais como figura andrógina de meia face maquilhada, é o objecto de desejo das mulheres que com ele cantam. Recuando no tempo, deparamo-nos com "In Cold Blood", o livro de fotografias que criou com Pedro Medeiros. Cada sequência é como que curta-metragem e a nudez uma constante. Recordamos a última: Tigerman a ser lidado na arena por uma mulher-toureiro. "Procurámos contar histórias através de algum tipo de fetichismo. Histórias que, para serem verídicas, têm de ter nudez". Têm? "As fotos da arena não faziam sentido se tivesse roupa. Tira-se roupa para aumentar as camadas de leitura e dar realidade, para conseguir o despojamento necessário".

Neste país menos cínico do que há 20 anos - "liberta-se o desejo em público mais facilmente e as pessoas preocupam-se menos com a sexualidade das outras" -, a música de Paulo Furtado tem corpo e sexo porque não se quer esconder da vida. "Não é uma obsessão. Uso o sexo por fazer parte da vida e, como tal, da arte".

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