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A privatização da RTP, a ingerência política e a discussão que se segue

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Mário Crespo desmentiu ontem ter sido convidado por Miguel Relvas Nuno Ferreira Santos

Primeira reunião do grupo de reflexão criado pelo Governo é na quarta-feira. Volta à baila o que fazer com o serviço público da comunicação social

Mesmo já com a privatização da RTP na mira, o Governo PSD/CDS criou um grupo de trabalho para definir o conceito de serviço público. O mesmo já tinha sido feito no executivo de Durão Barroso. E a mesma solução foi aplicada na era de António Guterres. Ao longo destes anos, o poder político tem ou não resistido à tentação de interferir nas escolhas editorais dos órgãos de comunicação social do Estado? Elementos do novo grupo de trabalho - alguns repetentes - e outros especialistas ouvidos pelo PÚBLICO concordam todos que essa ingerência tem existido.

A questão da independência da informação da televisão pública, sempre latente quando se discute serviço público, foi mais uma vez avivada pela notícia de anteontem à noite, no Expresso online, de que o ministro dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, teria convidado Mário Crespo, jornalista da SIC, para correspondente da RTP em Washington.

O jornalista desmentiu a informação ontem no Jornal das 9, na SIC Notícias, de que é pivô, e a administração da RTP negou qualquer tentativa de impor nomes para a delegação da estação em Washington. Mas o episódio ressuscitou o debate em torno da ingerência do poder político na televisão pública.

"Essa é uma das reservas que tenho em relação ao serviço público de televisão, de que sou a favor", diz Francisco Sarsfield Cabral, ex-director de informação da Rádio Renascença, e membro do grupo de trabalho agora nomeado, sem querer referir-se ao caso de Mário Crespo. Já José Manuel Fernandes, ex-director do PÚBLICO, também elemento do novo grupo de trabalho, é mais taxativo: "Cada vez menos se justifica a informação estar associada a uma entidade pública."

Também Eduardo Cintra Torres, crítico de televisão no PÚBLICO, partilha da opinião de que deve questionar-se se o serviço público deve ter um departamento de informação: "Dada essa tendência de intervenção do poder político nos meios de comunicação, que é histórica desde há 50 e tal anos, interrogo-me se não seria melhor haver serviço público de televisão sem informação. Defendo programas garantidos pelo Estado, mas não de informação."

No capítulo das interferências do Governo na área editorial, PS e PSD têm apontado o dedo mutuamente. E por que o poder político tem esta tentação? Para José Manuel Fernandes, a resposta é uma pergunta retórica: "Por que Adão e Eva não resistiram à tentação da maçã? Faz parte da natureza das coisas." Arons de Carvalho, ex-secretário de Estado da Comunicação Social dos governos liderados por Guterres, realça as melhorias na consolidação da independência de informação da RTP. "Pode haver a tentação, sobretudo em situações difíceis", admite o antigo governante. "Mas a RTP está muito mais independente e existem mecanismos que travam" essas tentativas de ingerência.

"Serviço público é mito"

Para o sociólogo Manuel Villaverde Cabral, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, outro membro do grupo de trabalho, sempre houve interferência do poder político na RTP. De Salazar até hoje. "A televisão era do Estado e de Salazar, e depois continuou a ser do Estado e a ser dirigida pelos governos do dia. Basta ver a luta pela televisão durante o PREC [Período Revolucionário Em Curso] e nos tempos a seguir", relembra.

O sociólogo acrescenta: "Quando a televisão foi aberta aos privados em 1992 e houve pluralismo a sério, o Governo de Cavaco Silva estava a perder o instrumento de propaganda. José Eduardo Moniz [então director de informação da RTP] fez concorrência à concorrência e tornou a RTP num falso serviço público, numa televisão comercial, caríssima e usada para propaganda do Governo." Em suma: "O serviço público de televisão é um mito."

Mais uma vez, foi criado um grupo de trabalho para reflectir sobre o serviço público dos meios de comunicação do Estado, tendo como pano de fundo a promessa deste Governo de privatizar um canal da RTP. Tanto José Manuel Fernandes como Cintra Torres aceitaram voltar a integrar um grupo de trabalho para repensar a comunicação social pública, depois de já terem participado num fórum semelhante em 2002, quando Morais Sarmento tutelava a comunicação social, num Governo PSD/CDS.

Ambos partilham a ideia de que muito mudou entretanto no panorama mediático. "Em 2002, não havia RTPN, o cabo não tinha a projecção de hoje e agora há formas diferentes de aceder à informação", exemplifica José Manuel Fernandes. "Mesmo que tenha sido feito o mesmo trabalho, passaram nove anos e o mundo da comunicação social mudou", argumenta Cintra Torres. José Manuel Fernandes lembra que o próprio conceito de serviço público evoluiu: "Já foi proibido haver televisões privadas e isso fazia-se em nome do serviço público."

Arons de Carvalho diz não ser contra este tipo de reflexões. Mas neste caso "parece que já há decisão [sobre a privatização] e fez-se uma comissão". O próprio Arons de Carvalho criou, em 1996, um grupo de reflexão sobre o futuro da televisão e que produziu um relatório com cerca de 200 páginas.

Muito mais crítico sobre esta iniciativa mostrou-se Sebastião Lima Rego, membro do Conselho de Opinião da RTP. "É muito estranho. Ou é uma manifestação de cobardia ou de hipocrisia política", diz, lembrando que os dois partidos que estão no Governo tinham propostas sobre o assunto. Sebastião Lima Rego, antigo membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social, considera que o grupo de reflexão de 2002 "conseguiu evitar que um canal fosse privatizado", mas o resultado da proposta para tornar o segundo canal aberto à sociedade civil foi "desastroso".

A privatização de um canal e o conteúdo do outro que ficar na esfera pública promete dividir o grupo. Villaverde Cabral é a favor da venda de um canal "para ajudar a pagar a dívida e "desestatizar" a RTP", mantendo um segundo com serviço público e uma informação cultural melhor do que a actual em todo o grupo RTP.

Sarsfield Cabral é mais prudente sobre a futura discussão interna, apesar de ser contra a "transformação da RTP1 num canal comercial" e defende uma análise dos custos: "Se calhar, a RTP Memória não custa nada e, por outro lado, pode fazer sentido juntar a RTPi e a RTP-África."

Depois de um intervalo de nove anos, a discussão recomeça, com a primeira reunião do grupo marcada para a próxima quarta-feira.

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