Imagem, música, acção

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O projecto, que se distribui entre a galeria Solar e o Centro de Memória, nasceu da vontade de explorar a contaminação entre imagem e música FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Cinema de terror com raparigas, concertos com géisers, poemas recitados ou celebrações de clubes nocturnos. "Stereo" é uma actualização desconcertante e séria dos encontros entre imagem em movimento e música popular. Com a assinatura de duplas feitas de músicos, artistas e cineastas. Na galeria Solar e no Centro de Memória. José Marmeleira

As relações entre o cinema e a música e a música popular e a arte contemporânea ganharam nas últimas décadas uma condição quase histórica. Os teóricos estudam-nas, os cineastas e os artistas trabalham-nas e os autores (jornalistas ou ensaistas) materializam-nas, cruzando territórios. Ficando só no cinema: lembramo-nos de Michel Chion (teórico e historiador), de Thom Andersen (cineasta), de Mark Fisher (jornalista e ensaísta).

E os públicos? Reconhecem-nas, o que explica a presença de "Stereo" no Curtas. O projecto, que se distribui entre a galeria Solar e o Centro de Memória, nasceu da vontade de explorar a contaminação entre imagem e música, com um objectivo particular: convidar seis duplas, constituídas por músicos e realizadores (e um artista) a produzirem trabalhos de raiz.

A escolha dos realizadores recaiu em nomes que passaram pelo festival. "Bruno de Almeida, Gabriel Abrantes e João Salaviza apresentaram filmes aqui, Rodrigo Areias venceu um prémio e a história do Sandro Aguilar fez-se com o Curtas. Só com João Onofre ainda não tínhamos trabalhado, mas a sua obra também é atravessada pela música", revela Nuno Rodrigues, da direcção do certame. Os pares fizeram-se depois. A maioria surgiu fruto de amizades ou colaborações (Rodrigo Areias com The Legendary Tigerman, Gabriel Abrantes com Pedro Gomes, Bruno de Almeida com Manuel João Vieira), os restantes nasceram de "blind dates" sugeridos por Nuno Rodrigues.

Sem iconografia

João Onofre e Adolfo Luxúria Canibal não se conheciam, mas o primeiro sempre gostou dos Mão Morta. Depois de troca de ideias, concluíram "A minha voz", filme com a música e a poesia do bracarense. Uma modelo repousa num sofá, levanta-se e volta a deitar-se. Ao longo desta acção, ouvimo-la a recitar com duas vozes o poema do músico: a sua, em ucraniano e português, e a do próprio Adolfo, sob o som de guitarras. As imagens têm a elegância plástica e formal dos vídeos de Onofre (e alusões ao cinema de Bresson, Buñuel, à fotografia de Edward Weston), enquanto as letras lidam com o vazio, a passagem do tempo e a perda da voz como marca identitária. De todos os trabalhos é o único com uma canção. "Sim, está lá. O texto é ditado de forma ritmada e depois gravei por cima o som das guitarras e do teclado. Mas no fim há um hiato sem som e logo a seguir um loop. As imagens não estão lá para ilustrar uma música ou vice-versa", esclarece o vocalista dos Mão Morta. Onofre partilha da opinião. "Procurei fugir ao formato do videoclip. Não queria a associação tradicional da mulher ao rock. Daí ter feito os enquadramentos ao nível da modelo. Para ser o menos voyeurístico possível".

Em "Royal Cabaret", de Bruno de Almeida e Manuel João Viera, não há tempo para pudores. Trata-se de uma sequência não linear de momentos dos concertos dos Ena Pá 2000. Vemos o líder da banda mas, entre planos de bailarinas, letreiros e cartazes o palco pertence ao Sr. Fernando, cliente e figura mítica do desaparecido clube. Conta o cineasta: "Tem muito a vez com o período em que trabalhei com Manuel João. A ideia foi fazer uma coisa hipnótica, pensada para uma instalação em "loop", modificando o som e as imagens". Os corpos numa valsa lenta com as luzes evocam memórias cinematográficas: Scorsese, Cassavetes. "Gosto desse universo, mas é uma homenagem ao Maxime, ao tempo indeterminado, suspenso, desse lugar".

Uma dos aspectos que se salienta em "Stereo" é o apagamento dos músicos enquanto "personas" pop- rock. Ora estão representados pela voz (Adolfo Luxúria Canibal), em aparições fugazes (Manuel João Viera) e presenças surpreendentes (Noberto Lobo) ou nas partituras musicais. A iconografia recolhe-se, assim, a um segundo plano, em favor da música como elemento constituinte da imagem. Veja-se "Domesticada", de The Legendary Tiger Man e Rodrigo Areias, sobre uma mulher que se liberta pela palavra e o som dos afazeres domésticos, e o filme da dupla Pedro Gomes/Gabriel Abrantes. Num caso, como no outro, os acordes e a distorção das guitarras são aquilo que dá significação à narrativa.

Raparigas e neve

O que não faltam no Centro de Memória, parafraseando o título de uma canção dos The Real Kids, são "All kindsa of girls". A cultura rock foi sempre coisa de rapazes e por momentos já escutamos alguém a citar Laura Mulvey. Falso alarme. O olhar masculino acaba sempre perturbado, quando não mesmo subvertido, como acontece em "Baby Back Costa Rica" da dupla Abrantes/Gomes: três raparigas chegam num carro de luxo, divertem-se numa piscina e comem pizza. Uma despe-se, mas a silhueta aproxima o seu corpo de uma forma indistinta. Filme de adolescentes? Quase. A parede de som da guitarra de Pedro Gomes (ex-Caveira) ameaça fazer explodir a superfície das imagens e, de repente, estamos num filme de terror sem vítimas ou sangue. "O carro sem condutor podia ser um carro assassino e a música provoca suspense. Mas o que aterroriza é o aburguesamento da contracultura", diz-nos Gabriel Abrantes. Crítica à vitória do dinheiro, à relação das classes altas com a cultura? "Porque não?", interroga-se o guitarrista. "Pode ser mais interessante questionar os hábitos da aristocracia financeira do que fazer um documentário sobre a pobreza".

Em "And they went", de Sandro Aguilar, patente na galeria Solar, a música dos Black Bombain está reduzida a apontamentos. O cineasta experimentou a apropriação de imagens preexistentes: uma dupla projecção vídeo mostra um plano fixo de um retrato que se repete e se dissolve, ao som de um assobio e de um acorde de guitarra. "Não achei interessante fazer um filme para a banda acrescentar uma textura sonora. Propus antes que o som dos acordes pudesse emergir de forma fragmentada para reinventar o loop". Do autor de "A Zona", esperavam-se ficções, mas a opção foi outra. E justificada. "Sou um cineasta e frustra-me não poder controlar o tempo. Tenho até resistência à instalação. Por isso, assumi as regras do jogo. Procurei criar a impressão de um loop que na verdade está submetido a variações que o espectador pode ou não acompanhar, embora o essencial esteja nos primeiros minutos."

Uma boa parte das peças de "Stereo" mostram narrativas que podiam correr no grande ecrã. "Strokkur", de João Salaviza e Noberto Lobo, é exemplar. Documenta a interacção de Lobo com uma paisagem gélida, a cem quilómetros de Reiquejavique. Munido de microfone e de mini-amplificador, o guitarrista resiste às condições atmosféricas entretido num ritual onde participam o vento, a voz, o nevão, o som de um géiser e a respiração de Salaviza. Som e imagem a trabalhem juntas, sem hierarquias, a história de um concerto com a natureza.

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