A língua como pátria de Elias Canetti

Quase cinquenta anos depois da sua tradução para português, chegou a reedição de "Auto-de-Fé", o único romance do escritor búlgaro-inglês de expressão alemã Elias Canetti. E está anunciada para breve a publicação do monumental ensaio "Massa e Poder". José Riço Direitinho

Descendendo, por linha materna, de astrónomos e de médicos judeus da corte de Afonso IV de Aragão (séc. XIV), o escritor Elias Canetti (n. 1905) - Nobel de Literatura em 1981 - nasceu na cidade portuária búlgara de Rutschuk, localizada na margem inferior do Danúbio, numa abastada família de comerciantes. Como era ainda normal nesse tempo nas famílias de judeus sefarditas, fosse qual fosse o país em que viviam, os seus membros falavam entre si o ladino ("castelhano antigo a que se foram juntando muitos vocábulos dos países da diáspora, em especial Turquia e Grécia"). Em casa dos Canetti, o búlgaro era apenas falado entre as criadas de servir arregimentadas nas aldeias distantes. Nessa cidade natal de Elias Canetti, um desses lugares de encontros comerciais, culturais e linguísticos, podiam ouvir-se num só dia sete ou oito línguas diferentes. Lá viviam turcos, gregos, albaneses, arménios, ciganos, romenos e também alguns russos. Era por isso importante estar-se habilitado a falar várias línguas. E cada um contava quantas sabia e falava disso com orgulho. (O avô do jovem Elias vangloriava-se de falar 17, pelo menos de "conhecer alguns vocábulos de dezassete línguas", corrigia a mãe.) Os que falavam apenas búlgaro "passavam por estúpidos", conta o escritor em "A Língua Posta a Salvo" (Campo das Letras, 2008), primeiro volume (e o único até agora publicado em português) dos três que compõem a sua magnífica autobiografia.

Mas foi em búlgaro que Canetti ouviu as primeiras histórias, cercado pelas raparigas da casa que, quando escurecia, se anichavam nos sofás junto das janelas e começavam a contar histórias de lobisomens e de fantasmas, cada uma mais horripilante do que a outra. O pequeno Elias ficava encolhido entre as criadas, a ouvi-las, até que os pais voltassem a casa. Passados muitos anos, ele consegue ainda recordar muitas dessas histórias, mas lembra-as, estranhamente, numa outra língua que então ainda não aprendera. "Não posso pegar num livro com lendas dos Balcãs sem reconhecer imediatamente muitas delas. Tenho-as presentes em todos os pormenores, mas não na língua em que as ouvi. Ouvi-as em búlgaro, mas conheço-as em alemão, esta tradução misteriosa é talvez o mais curioso de tudo o que tenho para contar da minha juventude e, como o destino linguístico da maior parte das crianças se processa de outra maneira, se calhar eu devia dizer alguma coisa sobre isso."

Em 1911 a família emigra para Inglaterra, e é em inglês o primeiro livro que Elias Canetti lê, oferecido pelo pai; é uma versão para crianças de "As Mil e Uma Noites", "The Arabian Nights". Acabada essa leitura a criança teve de contar ao pai o que lera. Depois desse livro veio outro, e depois outro. Chegaram assim os contos dos irmãos Grimm, de Robinson Crusoe, as Viagens de Gulliver, os contos escritos a partir de Shakespeare, do Dom Quixote, da Divina Comédia de Dante, de Guilherme Tell. Todos os livros tinham imagens, mas ele preferia as histórias. Elias falava com o pai sempre que acabava de ler um livro, mas ele nunca lhe confessou que as histórias não eram verdadeiras. E o pequeno rapaz ficou-lhe para sempre agradecido por isso. Canetti confessaria mais tarde: "Seria fácil mostrar que quase tudo aquilo que mais tarde me veio a formar estava contido nestes livros, que eu li por amor ao meu pai, no meu sétimo ano de vida. Das personagens que mais tarde nunca mais me largaram só faltava Ulisses."

A língua alemã

Canetti começou a aprender alemão aos oito anos quando, e após a morte do pai em Inglaterra, a mãe se decide mudar com os filhos para Viena, a cidade pela qual ela se apaixonara havia anos, e onde estudara e conhecera o marido. Corria então o mês de Maio de 1913. Pelo caminho, ficaram em Lausanne durante o Verão, e foi durante esse tempo na Suíça que a mãe decidiu ensinar-lhe alemão. Mas ela adoptou um método que em nada agradava ao pequeno Elias. A partir de um livro a que ele não tinha acesso, ela dizia frases que ele tinha que repetir em alemão e depois também o seu significado em inglês. E memorizar tudo, frases que ele ia repetindo ao longo do dia onde quer que estivesse. Foi uma aprendizagem traumática, e Elias Canetti ilustra-a bem nesta citação da sua autobiografia: "Já não sentia o vento, não ouvia a música, tinha sempre na cabeça as minhas frases em alemão e o seu significado em inglês. Quando podia, esgueirava-me para outro lado e praticava-as em voz alta sozinho, o que fazia com que repetisse com a mesma obsessão um erro que tivesse feito e frases certas. Não tinha qualquer livro que me servisse de controle, ela recusava-mo, teimosa e desapiedadamente, sabendo perfeitamente a afeição que eu sentia pelos livros e como tudo teria sido mais fácil com um livro. Mas a ideia dela era que uma pessoa não devia tornar as coisas fáceis."

O alemão fora a língua em que os pais falavam entre eles (enquanto com os filhos falavam inglês ou ladino); o alemão, "a língua em que se amavam", era como uma espécie de código secreto a que os filhos não tinham acesso. Com a sua aprendizagem, foi como se Canetti atravessasse a fronteira entre o espaço dos seus pais e o seu próprio espaço. Ele fez do alemão o seu território particular, uma espécie de espaço próprio, a sua "Heimatland", a sua pátria (parecendo evocar Pessoa).

Em 1916, já em plena Primeira Guerra Mundial, era difícil conseguir uma autorização para sair da Áustria. Mas a mãe decide que tinham que deixar Viena. Depois de vários percalços, conseguem mudar-se para Zurique, onde passam a viver em modestos quartos alugados. E a partir de 1919 Elias Canetti passa a viver sozinho em Zurique, pois a mãe e os irmãos voltam a Viena. É na Suiça que Canetti escreve o seu primeiro texto literário, uma peça em verso intitulada "Junius Brutus", que oferece à mãe. O facto de ele ter escolhido a língua alemã para sua língua literária (escreveu em alemão toda a sua obra literária apesar de ter adquirido a nacionalidade inglesa em 1952 e de ter vivido em Londres durante quase quatro décadas, desde 1938) não é, para Canetti, explicável; de maneira inconsciente, as recordações das histórias que ouvira contar em búlgaro, quando era uma criança, passam a ser recordações em alemão.

A sua primeira obra de fôlego (e único romance - ele escreveu sobretudo ensaios, peças teatrais e diarísticas), "Auto-de-Fé", deu-a por terminada em 1931, já depois de ter concluído o curso de química em Viena. Apesar da idade, Canetti há muitos anos que se movia nos meios literários e artísticos vienenses e berlinenses, e não é de admirar que tenha enviado o manuscrito do romance a Thomas Mann; que, no entanto, lho devolveu sem o ter lido (segundo a carta que acompanha a devolução, por "insuficiência de forças" para a sua leitura). "Auto-de-Fé", que é sem dúvida um dos romances mais ambiciosos da literatura moderna - por muitos comparado a obras como "A Morte de Virgílio", de Broch, ou "O Homem Sem Qualidades", de Musil - conta-nos a história do erudito Peter Kien, um sinólogo que vive recluso no seu apartamento transformado em biblioteca, com 25 milhares de livros, recusando contactos físicos e sociais, e que pouco a pouco vai descendo ao inferno levado pela ignorante governanta com quem casou.

Canetti retrata um mundo em desintegração, anárquico, com um carácter que balança entre o grotesco e o pesadelo. Por um lado, e como nota Vargas Llosa num ensaio, o romance poderá ser lido como uma "alegoria ideológica e moral", com a imagem da biblioteca em chamas e a imolação do seu dono, como uma "prefiguração" das inquisições do nacional-socialismo. Mas ao mesmo tempo, "Auto-de-Fé" é também uma metáfora modernista da sociedade que está a perder a razão e em que as demagogias fanáticas se aprestam para a empurrar para o inevitável cataclismo. A crueldade, a banalidade, os fantasmas obsessivos que se libertam quando desaparece a fronteira entre os desejos e o real, transformam a vida numa espécie de alienação fantástica ao jeito dos quadros dos expressionistas alemães (Kirchner, Grosz, Dix), em que os retratos e os gestos são sempre caricaturas grotescas.

Quando o romance foi publicado, em 1935, Canetti tornou a enviá-lo a Thomas Mann, que desta vez o lê, e lhe escreve uma longa carta em que pede desculpa pela sua atitude de quatro anos antes e diz-lhe ainda que quer reparara a injustiça do seu acto. Mais tarde, num encontro com Musil, e depois de este elogiar o "Auto-de-Fé", Canetti menciona a longa carta de Mann; Musil muda a sua atitude para com Canetti, e a conversa entre os dois terminou de imediato.

Durante cerca de 20 anos, Canetti alinhavou e escreveu "Masse und Macht" ("Massa e Poder"), um ensaio de difícil classificação onde ele analisa de maneira genial o comportamento das massas associando-o à neurose. Elias Canetti, segundo palavras suas, quis "agarrar o século XX pelo pescoço". E fê-lo de que maneira! Esse ensaio monumental, pela primeira vez cá editado, será ainda publicado este ano.

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