Os seus "gadgets" deixam um rasto de sangue e poluição?

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Cassiterite SÉRGIO AZENHA

Sabe de onde vem o térbio usado no fabrico do seu iPod? E o tântalo do seu portátil? Pode vir da República Democrática do Congo, extraído por mão-de-obra escrava. E saiba que o seu gadget pode sempre ser vítima da subida de preços das terras raras. Viagem ao interior da electrónica.

De cada vez que o seu telemóvel vibra em vez de tocar, isso é obra de um mineral chamado volframite. Muitos aparelhos que usamos no dia-a-dia, de iPods a smartphones, passando por monitores e tablets, têm na sua composição elementos como o ítrio e/ou minerais como a cassiterite.

Estas matérias-primas são hoje indispensáveis à indústria electrónica. Um iPod, por exemplo, contém pequenas quantidades de disprósio, neodímio, praseodímio, samário e térbio. Ao passo que os cabos de fibra óptica contêm érbio, európio, térbio e ítrio. São "elementos do grupo das terras raras", como explicou à Pública João Prata, professor auxiliar do Departamento de Ciências da Terra da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. E "raro", para os gadgets que cada vez mais se vulgarizam, pode significar "vários problemas".

Há ainda minerais que, não sendo constituídos por elementos do grupo das terras raras, também entram na composição de artigos de electrónica, como telemóveis por exemplo. É o caso da cassiterite, da volframite e da columbite-tantalite. Todos eles são obtidos através da extracção mineira.

Um dos problemas que enfrentam hoje aqueles que precisam de fabricar os seus produtos com estes elementos (imagine-se a Apple, para poder manufacturar os seus inúmeros gadgets) é o domínio absoluto da China neste sector. O gigante asiático produz 97 por cento dos minerais e elementos do grupo das terras raras. Como explica a Time num artigo recente, a dependência do resto do mundo em relação a estas exportações chinesas ficou bem clara quando Pequim decidiu limitar as exportações destas matérias-primas, causando uma subida dos preços. Os líderes chineses anunciaram que, durante os primeiros seis meses deste ano, a quota de exportação destes elementos seria cortada para 35 por cento.

O domínio da China

O que é que aconteceria se a China suspendesse de repente as exportações deste tipo de matérias-primas? De acordo com Haibing Ma, um dos responsáveis chineses da organização ecologista mundial Worldwatch Institute, isso não é um problema iminente. "Antes de mais: a China não vai parar a extracção", disse o responsável à Pública.

"Em segundo lugar, a reserva chinesa contabiliza apenas 30 por cento da capacidade mundial. Mesmo que a China imponha um embargo às exportações, outros países com recursos semelhantes - como a Rússia, a Austrália, os Estados Unidos, o Brasil e o Canadá - poderão aumentar as suas quotas de produção. Não estamos [globalmente] tão agarrados [às exportações chinesas] como algumas vezes é sugerido. É esperado que a produção destes elementos pelos EUA possa subir dos actuais 3/4 por cento para uma quota mundial de 12 por cento em 2012", indicou ainda Haibing Ma.

Para além de ser uma questão económica, esta é também uma questão ambiental. Por dois motivos - o primeiro em consequência directa da extracção, que gera resíduos tóxicos e reservas de água radioactiva. A cidade de Baotou, na Mongólia, é o exemplo acabado de uma região consumida pela extracção de minérios. Ainda assim, este fenómeno é circunscrito geograficamente às zonas onde acontece. De acordo com Haibing Ma, "o impacto ambiental da extracção é localizado e não é provável que se transforme num problema ambiental global, mesmo se todos os países com estes recursos começassem a extrair as suas reservas em larga escala".

Mas há outra consequência ambiental indirecta: muitas destas matérias-primas são fundamentais para o sector das energias renováveis, nomeadamente na construção de painéis solares e turbinas de vento. Se houver uma brusca diminuição do fornecimento destes elementos, este sector poderá ficar estancado.

Portugal exporta

Com tamanha procura mundial, não haverá o perigo de estes materiais se esgotarem? João Pratas concede que "nenhum minério é inesgotável", mas sublinha que "ainda existem reservas consideráveis para estes metais".

Por seu lado, o Laboratório Nacional de Engenharia Geológica (LNEG) frisa que "a carência destes recursos não é previsível".

Em Portugal, a extracção destes componentes fundamentais à electrónica é residual, se olharmos para o panorama global. De acordo com João Pratas, o "minério de volfrâmio e estanho" extraído nas minas da Panasqueira é "quase todo exportado". Por seu lado, o LNEG adiantou à Pública que entre 1991 e 1992 uma empresa espanhola obteve direitos de prospecção e pesquisa numa área próxima de Alter do Chão (Portalegre) onde existem "rochas hiperalcalinas portadoras de minerais de terras raras", mas a empresa concluiu que as concentrações "não eram economicamente exploráveis". Ainda assim, aquilo que, em Portugal, suscita mais interesse do ponto de vista económico são os "quartzitos radioactivos de Portalegre", adianta o laboratório.

E há substitutos para estes componentes? Haibing Ma esclarece: "Sim, há substitutos. Na verdade, os EUA e o Japão deram início a uma iniciativa para explorarem em conjunto estes substitutos." O LNEG acrescenta, por seu lado, que "o desenvolvimento científico certamente encontrará sucedâneos funcionais".

Questão de direitos

humanos

À semelhança do que acontece com os diamantes, alguns destes minérios podem ser "de sangue". Ou seja, extraídos por autêntica mão-de-obra escrava em países como a República Democrática do Congo (RDC).

A este propósito, a Pública contactou a Global Witness, que lançou no passado dia 18 um relatório dedicado ao tema. Mike Davis, desta organização não governamental (ONG), referiu que "há muitos casos de abusos dos direitos humanos, globalmente, no processo de extracção de minerais e outros recursos naturais". Concretamente na RDC, "durante anos, os grupos rebeldes e membros do exército fizeram milhões de dólares através do controlo ilegal das minas de tungsténio, tântalo, alumínio e ouro, infligindo um sofrimento atroz à população local", revela a organização.

Dir-se-ia que qualquer gigante tecnológico ocidental recusaria incorporar nos seus aparelhos matérias-primas recolhidas nestas circunstâncias, mas o problema está na opacidade da cadeia de produção. É muito difícil verificar, passo a passo, todos os elementos que concorrem para a fabricação de um produto.

Empresas como a Apple, a Toshiba ou a Hewlett-Packard, por exemplo, pagam a outras empresas a manufactura dos produtos por si desenhados e concebidos, empresas essas que por sua vez compram material a outras, que por seu turno recebem o material de fornecedores que estão mais abaixo na cadeia de produção. Quando chegam às empresas de electrónica, os materiais poderão já ter passado por sete "mãos" diferentes, revela a Time.

Steve Jobs, o CEO da Apple (actualmente de baixa médica), referiu-se a esta dificuldade durante o Verão passado: "Exigimos a todos os nossos fornecedores que certifiquem, por escrito, que não usam materiais extraídos em zonas de conflito. Mas, honestamente, não há forma de eles terem a certeza absoluta disso. Até que alguém invente uma forma de, quimicamente, conseguir determinar de que mina vieram os minerais, este é um problema muito difícil [de resolver]."

Do lado do consumidor, as coisas não são mais fáceis. Se para os diamantes já existe o Processo de Certificação Kimberley, que tem por objectivo erradicar os "diamantes de sangue" do comércio internacional (os consumidores devem optar sempre por pedras certificadas), para estas matérias-primas não existe ainda um processo semelhante. Ou seja, quando compramos, por exemplo, um iPod, não fazemos ideia de onde vem o disprósio e o térbio que constam do seu interior. Podem vir de um país onde se pratiquem graves violações aos direitos humanos.

Alguns dos principais gigantes tecnológicos mundiais, incluindo a Apple, defendem a necessidade de criar um processo de certificação semelhante ao Processo Kimberley, com auditorias internacionais mais exigentes. "Este assunto requer trabalho conjunto de organizações intergovernamentais, nacionais e governos locais, bem como de ONG ambientais. Uma convenção internacional especificamente dedicada ao negócio da extracção destas matérias-primas seria o ideal", estimou Haibing Ma. "Mas, antes que isso aconteça, estamos dependentes da autodisciplina dos países produtores", concluiu.

Site:

http://www.globalwitness.org/library/congos-mineral-trade-balance-opportunities-and-obstacles-demilitarisation (Congo"s mineral trade in the balance: opportunities and obstacles to demilitarization - 18/05/2011)

susaribeiro@publico.pt

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