Banksy, o bom artista

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Ao longo de todo o filme, Banksy permanece de cara tapada e com a voz distorcida: o anonimato é a condição do "street artist"?

O documentário (ficção?) que agora chega às salas não responde à pergunta "Quem é Banksy?". Mais do que um retrato da "street art" (ou do artista, que permanece anónimo), é uma caricatura do mundo da arte, e do seu peculiar "star system". Nuno Crespo

"Banksy. Pinta a parede" é um objecto paradoxal. Está entre o documentário, a ficção, o manifesto e o filme de artista. A expectativa é que responda à pergunta "Quem é Banksy?", mas a pergunta fica por responder. E no lugar da pessoa surge o retrato de um movimento artístico secreto e "underground" e uma severa crítica ao mundo da arte. E Banksy mantém-se como "persona" contestatária, subversiva e, acima de tudo, como bom artista.

A abertura, muito apropriada, é dada por Richard Hawley, que canta "do you know that

tonight the streets are ours". Este é o mote da primeira parte do filme. Uma viagem ao mundo do grafiti, mas sobretudo uma viagem por essa imensa galeria a céu aberto que é Los Angeles. A viagem é nocturna e arriscada, e o artista urbano apresenta-se como um herói: sempre a tentar chegar a lugares inacessíveis e perigosos (fachadas altas, telhados, espaços públicos vigiados), a executar operações complexas com a ajuda de escadas e de ferramentas improvisadas, movido pela ambição de melhorar o espaço público naa urgência, quase romântica, de salvar um bem comum e de democratizar e tornar acessíveis os gestos artísticos. Para isso, leva pedaços do mar e da natureza para lugares onde só se vê o cinzento do betão, coloca caras alegres nas empenas desertas dos edifícios onde nem janelas existem e escreve frases com humor.

"Banksy. Pinta a Parede" não é um discurso sobre a "street art", mas uma narrativa na primeira pessoa pelos protagonistas dessa cena artística, que se deixam "documentar" pela câmara de um francês obsessivo chamado Thierry Gueta, personagem (ou será real?) que Banksy utiliza para fazer o seu documentário (ou será uma ficção?). Resumindo: o artista, agora realizador, conta a história de um francês (que não se sabe se é facto ou ficção) para falar do seu mundo.

Ao longo do filme, a dúvida é permanente: estará Banksy a falar sobre si próprio? Focar a história em Gueta permite-lhe comentar a história da "street art" sem falar de si e caricaturar por interposta pessoa o mundo da arte. Bansky aparece no filme, mas sempre a propósito da descrição das aventuras de Gueta e mantendo a cara tapada e a voz distorcida. Um anonimato necessário, porque só ele permite a realização do trabalho político de Banksy (fez intervenções do muro de Israel, amarrou um boneco numa grade do parque da Disney nos EUA, entre muitas outras acções). Não se mostrar obriga a que o reconhecimento e o mediatismo se concentrem no trabalho e permite que o artista continue a trabalhar em liberdade: se não se souber quem é, não pode ser acusado de obstrução da via pública, de crime político, de danos patrimoniais. Mas também serve o propósito de negação do "star system" do mundo da arte, que tanto critica.

A ficção de Banksy

Este falso-verdadeiro documentário começa contra a vontade: Banksy não queria nada disto. A culpa foi de Gueta, que um dia descobriu a ambição de fazer um documentário sobre esta cena clandestina. E os artistas, até então receosos de se expor, aceitam participar, sobretudo porque os seus trabalhos são tão efémeros que é preciso documentá-los.

É assim que nasce o documentarista Thierry Gueta. E se o acaso é a origem do filme, também é uma constante no que se segue. É assim que a primeira parte da história - e diga-se: é uma história bem contada - se desenvolve: artistas envolvidos em trabalhos que simultaneamente são gestos políticos, poéticos, surpreendentes e belos.

As qualidades formais do trabalho artístico não são esquecidas. Numa cena, o ingénuo e inculto Gueta pergunta a um artista "mas tu sabes desenhar?", enquanto aponta para uma mancha de cor "grafitada" na parede. E o artista, espantado, reage: "Mas não vês que isto é uma pintura?" Um espanto fundamental para se perceber a fronteira entre o vandalismo urbano e a "street art". Está-se num plano informado e educado: a herança da pintura e a liberdade formal trazida pela modernidade fazem-se sentir. E não há espaço para equívocos: todas as personagens deste filme são artistas intensamente envolvidos na produção de arte.

A partir de certa altura, o filme deixa a "street art" e assume como elemento central a transformação do francês documentarista "com problemas mentais" num louco de ambição desmedida que se faz artista. Descobre-se que o documentário era "uma merda, mas o material era muito bom", e por isso o anónimo Banksy vê-se obrigado a terminar a tarefa e a fazer de realizador. Novamente o acaso a ditar a acção.

A arte é uma piada

O francês deixa-se contagiar pela ambição de querer ser artista e transforma-se em artista-sensação. Do seu retrato - ele que nunca quis ser artista, mas acedeu a uma sugestão amiga - nasce uma visão de um mundo da arte em que não existe inquietação artística, mas só se responde às condições de mercado e se manipulam os diferentes meios de legitimação e afirmação: curadores, críticos, coleccionadores. A arte transforma-se num parque de diversões e deixa de ter significado. A "meaningless art" que Banksy, através dos comentários acerca do novo artista, tão duramente crítica.

Thierry Guetta (ou Banksy?) deixa de ser documentarista para ser um "street artist" de tal modo bem sucedido que as suas peças (como as de Banksy) são reproduzidas e a sua assinatura passa a valer milhões nas leiloeiras e nas galerias internacionais. As celebridades festejam o seu sucesso (talvez como Brad Pitt e Clive Owen quando vão à inauguração de Banksy em Los Angeles) e vêem o artista como uma estrela. Estes são os ingredientes da comédia (trágica?) montada pelo artista.

A piada deste mundo da arte ao qual se escolhe pertencer está no paradoxo: para sobreviver, o artista tem de alinhar, vender e dialogar com os diferentes protagonistas (e Banksy é disso um dos melhores exemplos), o que dá vontade de rir (um riso de nervoso miudinho). O retrato é cínico e, para tornar evidente o sucesso da piada, Banksy (via Thierry) afirma: "O Andy Warhol morreu e eu estou aqui."

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