Os jogos que os irlandeses mais jogam

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O hurling joga-se com sticks, num relvado. Os jogadores usam capacetes Foto: Reuters

À entrada do O’Moore Park, em Portlaise, o homem da porta diz: “Ah, é português? Vai ver um jogo de futebol ‘a sério’”. Mas não será o futebol inventado pelos ingleses (a que os irlandeses chamam soccer, tal como os norte-americanos), que vai ser jogado naquela tarde nesta localidade a uma hora de distância de Dublin. A bola também é redonda e também pode ser jogado com o pé, mas trata-se de uma invenção irlandesa que terá mais semelhanças com o futebol australiano. Depois virá mais uma invenção desportiva irlandesa, o hurling, também com uma bola, bastante mais pequena, semelhante a uma bola de basebol, que é considerada a modalidade colectiva de campo mais rápida de todo o mosaico desportivo mundial.

O que dizer a alguém que nunca viu um jogo de hurling na vida? “Prepare-se, vai ficar espantado. Você, que está habituado ao soccer, vai ver a velocidade a que isto se joga”, diz Eddie, vendedor de 35 anos, que apoia a equipa local, o Laois, naquele dia anfitrião de um jogo com o Atrim, que vem de muito longe, da Irlanda do Norte.

São 15 jogadores de cada lado: um guarda-redes, seis defesas, dois médios e seis avançados, como explica Denny Cahill, treinador do Atrim. Tacticamente parece ser um jogo bastante rígido e pouco dado a grandes manobras, em que as posições dos jogadores estão bastante bem definidas, marcação homem a homem. Mas há aliciantes. Para fazer mexer a bola, cada um dos jogadores está equipado com uma espécie de bastão, o hurley, que faz lembrar um stick de hóquei, mas que não é bem a mesma coisa.

É um jogo físico e, como Eddie prometera, rápido, sendo que, segundo os jornalistas que estão na bancada de imprensa, este até nem seria o exemplo do melhor hurling, que estará reservado para os confrontos entre as grandes equipas. Este será, portanto, um jogo de meio da tabela, mas que até será um grande espectáculo para o adepto menos experimentado. Minuto de silêncio, hino da Irlanda, depois gritos em vez de palmas. O jogo vai começar.

O futebol gaélico e o hurling são desportos milenares e puramente amadores. Os jogadores não são pagos para jogar e os treinadores não são pagos para treinar. As competições são organizadas pela Associação Atlética Gaélica e estas modalidades estão entre os desportos mais populares e com mais praticantes do país. As equipas representam condados e são uma selecção dos melhores jogadores das equipas dessas regiões. Portanto, um jogador, salvo algumas excepções, estará sempre fidelizado à equipa da sua terra. Não há transferências milionárias, não há empresários, não existem salários de milhões. “Jogam por paixão”, observa Denny Cahill, enquanto mostra as suas mãos cheias de altos e de mobilidade limitada, marca da idade e de anos a levar bastonadas dos adversários nos seus tempos de jogador.

82 mil adeptos num estádio

Os jogadores mais populares são superestrelas e são reconhecidos na rua, marcas como a Guinness ou a Etihad Airways (que também patrocina o Manchester City) são os patrocinadores, os encontros têm transmissão directa na televisão. Por exemplo, o grande jogo do ano, que será o All-Ireland Final (a final entre condados), tem 82 mil pessoas a assistir no Croke Park, mais que a Arena de Dublin, o estádio que recebe nesta quarta-feira a final da Liga Europa, onde cabem 50 mil espectadores.

No O’Moore Park, não estarão mais de sete mil pessoas, todas sentadas na bancada coberta, mas o recinto terá capacidade para cerca de 30 mil, em que cerca de três quartos são bancada de peão. Antes do jogo grande do dia, uma partida de juniores em futebol gaélico – parecido com o râguebi, joga-se com o pé e com a mão e o objectivo é marcar pontos e golos numa baliza semelhante ao “H” do râguebi. Por cima são pontos, por baixo são golos (cada um deles vale três pontos).

O sistema de pontuação do hurling é igual, mas o jogo é bem mais rápido, sempre em progressão, não há tácticas defensivas que resistam, não vale a pena ter os 15 jogadores ao pé da baliza porque quase que se pode pontuar de qualquer lado, dependendo da força e da pontaria com que os jogadores manejam a pequena bola a que chamam sliotar. Também é um jogo com muito contacto físico, embora não sejam permitidas placagens, e os jogadores têm de usar capacete, cujo uso obrigatório foi introduzido em 2009. Os cinquentões Tim Donne e Sean Murphy, dois adeptos da equipa da casa, foram hurlers no tempo em que não se usava capacete e, sim, levaram muitas bastonadas na cabeça. Acidentalmente, ressalvam. Ambos também gostariam de ver Cristiano Ronaldo a jogar hurling. “Tem físico para isso”, diz Sean.

Como equilibrar um ovo

O jogo é uma sucessão de pontos e golos. Ao intervalo, o Laois está na frente com 2-7 (dois golos e sete pontos) contra 1-5 do Antrim. A “estrela” do jogo tem sido Willie Hyland, estudante, que fará os exames na próxima semana para terminar o liceu. Para atletas amadores, que podem ser estudantes, canalizadores e engenheiros, os jogadores de hurling mostram óptima condição física e enorme habilidade no manejo do hurley, na forma como equilibram a bola na ponta do bastão enquanto correm (como se estivessem a equilibrar um ovo com uma colher de pau durante uma gincana) e na facilidade com que disparam uma bola na direcção da baliza a longas distâncias.

Na segunda parte, o Antrim fica com menos um jogador, devido à expulsão de Neil McAuley, um defesa, mas consegue colocar-se em vantagem devido ao acerto nos remates de longa distância. Quando a desvantagem já parece irrecuperável, os adeptos locais são iguais aos outros, saem mais cedo e não esperam pelo final. Ganha a equipa que veio do Norte (1-21 contra 3-12) e que ainda terá de enfrentar uma viagem de três horas num autocarro até chegar a casa. John e Paddy, dois primos de 13 anos, também vão fazer esta viagem e esperam um dia estar na equipa de hurling do seu condado. Para eles, dizem, é uma questão de paixão e tradição familiar. E o soccer? “Não gosto”, diz Paddy. “Não é tão físico.”

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