O telemóvel de Ingo Schulze

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Ingo Shulze, que nasceu na antiga RDA, lamenta o apagamento radical a que foi submetida uma grande parte do século XX alemão JIM RAKETE

É considerado o mais importante escritor alemão da geração que começou a publicar após a queda do Muro de Berlim, e um dos grandes autores europeus. Traduzido em quase 30 línguas, estava até agora estranhamente inédito em Portugal. "Telemóvel - 13 histórias à moda antiga" é a sua estreia por cá.

José Riço Direitinho

Nascido em Dresden, antiga República Democrática da Alemanha (RDA), em 1962, Ingo Schulze, que estudou filologia clássica e literatura alemã, trabalhou como dramaturgo em Altenburg e foi jornalista na Rússia da "Perestroika". Estreou-se na literatura em 1995 com uma colectânea de histórias inspiradas numa estada em São Petersburgo. De imediato recebeu os favores do público e da crítica, e ganhou todos os importantes prémios literários alemães desse ano. Seguiram-se vários romances e colectâneas de contos, quase todos tendo como personagens pessoas perdidas, confusas e desoladas, que se estranham ao entrar num mundo que não conhecem mas que, mesmo assim, lutam por entendê-lo. Com o tempo, tornou-se um autor incontornável na literatura europeia.

Até agora, estava, estranhamente, inédito em Portugal. Mas a colectânea de contos "Telemóvel - 13 histórias à moda antiga" acabou de ser cá publicada pela 7 Nós, e Schulze passou pelo Porto e por Lisboa para a apresentar. Num hotel da capital, poucas horas antes da apresentação no Goethe-Institut, falou com o Ípsilon.

Se o Muro de Berlim não tivesse caído, teríamos na mesma um escritor chamado Ingo Schulze?

Não tenho a completa certeza. Mas penso que teria sido sempre um escritor, embora mais tardio. E de certeza muito diferente daquilo que sou hoje. O mundo seria hoje um lugar bastante diferente e, por consequência, eu também.

Interessou-se desde novo pela literatura? Queria ser escritor?

São duas coisas diferentes: o interesse pela literatura e o desejo de se tornar escritor. Desde criança que eu queria ser escritor, sonhava ser famoso muito depressa para poder escapar à incorporação no exército. No jardim infantil eu já tinha pavor do exército, não sei porquê. Mas os meus primeiros contactos com a literatura aconteceram um pouco tarde. Comecei a ler febrilmente aos 13 ou aos 14 anos, mas só aos 20 escrevi os primeiros contos... depois de ter passado 18 meses no exército... Não consegui ser famoso antes... [risos]. Depois passei muito tempo sem saber o que escrever. Tentei muito, escrevendo de uma maneira ou de outra, mas nada daquilo era bom, e eu sabia. Até perto dos 30 anos não tinha nada para mostrar. Nessa altura, fui para São Petersburgo, como um estúpido homem de negócios, para criar o primeiro jornal gratuito da Rússia. E nessa cidade - em que diferentes tempos históricos coexistem - apercebi-me de que aquilo que sempre procurei, a minha própria voz literária, se calhar não era assim tão importante, que em vez de uma eu poderia ter muitas. O que eu tinha era de ouvir as vozes das personagens, elas é que dão o tom aos livros. Escrevi então "33 Augenblicke des Glücks" ["33 Momentos de Alegria", ainda inédito em Portugal], uma colectânea de 33 contos, todos muito diferentes.

No seu romance "Neue Leben" (2005) ["Vida Nova", edição portuguesa prevista para 2012], escreveu que a RDA era uma "terra de sonho" para escritores. Estava a ser irónico?

De certa forma sim, porque estou contente que a RDA tenha acabado. Mas por outro lado, havia sempre a possibilidade de não seguirmos a estrada que nos mostravam, e aí, se não nos prendessem, poderíamos tornar-nos heróis... heróis de um certo submundo. Os escritores eram considerados muito importantes porque tinham o poder da palavra, e as ideologias assentam sobretudo nesse poder - mas é um poder que ao mesmo tempo também pode servir para as destruir. Depois de 1989 [ano da queda do Muro], os escritores perderam muita da sua importância social. Passaram a perguntar-nos apenas quantas cópias vendemos... dantes as coisas não eram assim. Nos tempos da Guerra Fria cada palavra era importante, mesmo no Ocidente. Mas pesando tudo, é melhor ser um escritor hoje do que antes. Temos mais estradas por onde caminhar.

Dos escritores que leu, quais o influenciaram e formaram?

Devo dizer que, quando o Muro caiu, nós tínhamos acesso a quase tudo... mais ou menos. Se não eram os livros que havia nas bibliotecas e que eram publicados na RDA, recorríamos a familiares ou a amigos. Autores proscritos na União Soviética, o Soljenitsin, por exemplo, circulavam por baixo das mesas. Henry Miller, Faulkner e Carver estavam publicados. Quem quisesse realmente ler de tudo poderia fazê-lo, recorrendo a contactos. E isso acontecia um pouco por todo o Leste. Claro que a situação melhorou depois de 1989. Como influência mais tardia, foi para mim muito importante o chamado "conceptualismo moscovita", sobretudo os livros de Vladimir Sorokin. Com ele eu percebi que o estilo não é uma coisa como a personalidade, que só se pode ter uma. Nessa altura, eu sentia que os anos 90 na Alemanha de Leste tinham muito da década americana de 50... dos filmes do Marlon Brando e do James Dean... Havia aquele sentimento de descoberta, e de se estar perdido no mundo, que tinha quem chegava da RDA... [risos]. E isso interessava-me muito.

Muitas das personagens das suas histórias (sobretudo dos primeiros livros) parecem de facto caracterizar-se por essa desorientação face ao novo mundo que as rodeia...

As minhas histórias podem ter lugar em Lisboa ou em Estocolmo, o lugar não é importante, e as situações que descrevo são simples. O que faz a diferença e o que me interessa é o facto de as personagens não estarem familiarizadas com as condições que as rodeiam, são estranhas numa terra estranha. Vêm de um outro mundo, e têm de descobrir, de aprender, como se devem comportar naquele novo mundo. Quem vinha do Leste, como eu, entrava de repente num mundo americanizado, um mundo que só existia nos filmes. Éramos "aliens".

O que é este "à moda antiga" com que subtitula o livro que acaba de ser por cá publicado?

É o meu fascínio pela oralidade, pelos contadores de histórias simples, pelas antigas histórias de amor e morte. Só temos uma história que é digna de ser contada se surgir alguma alteração do real, se se abrir uma brecha no quotidiano, que pode ou não ser uma grande tragédia doméstica, mas que é sempre uma alteração. Na vida, o cómico anda junto com o trágico... é essa vivência que eu quero também contar. Cada nova experiência modifica a imagem que temos do passado. Isso interessa-me muito.

Há em "Telemóvel" uma sobreposição de tempos de escrita, desde a primeira história até à última. A banalização do telemóvel tornou-se um marco que baliza a passagem de um tempo a outro?

Os primeiros seis contos foram escritos entre 1998 e 1999, os outros sete em 2006. Há na primeira história [a que dá título ao livro] ainda uma certa desconfiança em relação ao aparelho, uma espécie de medo em relação às tecnologias que não se dominam. A meio da década de 90, a banalização do telemóvel trouxe de facto às pessoas alguns problemas que elas não tinham, deu-se uma espécie de aceleração do tempo... da vida. As conversas, que dantes tínhamos quando passávamos por casa dos nossos amigos sem antes ser preciso avisar, só porque nos apetecia, só porque por acaso estávamos ali diante da porta, tinham-se acabado de repente. Agora só conversamos cara-a-cara com marcação prévia. Como as idas ao médico. O tempo tornou-se dinheiro. Deu-se uma espécie de "economização" de todos os aspectos da vida privada e social. Nas histórias mais recentes é possível perceber que o mundo mudou muito... em tão pouco tempo.

Os alemães falam muito do passado, como se precisassem de reconstruir alguma coisa que os habilite a viver o presente. O que aconteceu com a memória da RDA?

Os alemães têm uma relação muito conturbada com a sua História, e não pode ser de outra maneira. Há sempre uma luta com o passado. A imagem que nós hoje temos da RDA interage com o nosso presente, e neste caso é muito fácil coleccionar clichés - visões muito redutoras e parciais. Quanto mais inseguro é o presente mais se procuram certezas antigas. Mas não conheço ninguém da antiga RDA que a queira de volta. Pelo contrário, muitos no Ocidente gostariam de voltar ao antes de 1989, pois a concorrência não era tão dura, ainda havia empregos suficientes e a sociedade não estava economicamente tão polarizada como agora. O Ocidente está a perder o rosto humano, a desumanizar-se. E do Leste não sobrou nada.

A chamada "reunificação alemã" foi então uma "absorção" por parte da Alemanha Ocidental?

Eu queria que tivesse sido uma reunificação. Mas o que aconteceu foi que o Leste se tornou Ocidente, com a destruição das coisas boas da RDA. Eu tinha 26 anos quando o Muro caiu, obviamente que a RDA me marcou muito. A primeira vez que eu tive que pensar em dinheiro tinha 27 anos. Antes, o dinheiro não entrava nas nossas preocupações quando pensávamos em ter uma casa ou em escolher uma profissão. Mas em 89/90 deu-se uma mudança radical e alteraram-se as nossas dependências. Se antigamente o que era mais importante era a dependência ideológica, agora são as dependências económicas. Se eu antes não podia viajar por causa do Muro, e se depois não posso comprar o essencial por não ter dinheiro, no fundo, ambas as coisas são muito similares. Com a "reunificação" o Ocidente perdeu uma grande hipótese. Não sinto falta da RDA, mas tenho de admitir que existiam coisas estruturantes que não deveriam ter sido destruídas. Havia uma série de alternativas que ainda podiam ser válidas; por exemplo: acho uma loucura que os médicos tenham de ser ao mesmo tempo homens de negócios. Na RDA isso era impensável. A energia, os transportes, a saúde e a água deveriam ser sempre serviços públicos. Agora em Berlim conseguimos que a água não fosse privatizada...

Quando visito Berlim sinto que a nova arquitectura, sobretudo a do lado Leste, quer apagar o passado...

Sim, é verdade. Uma parte de Berlim foi, e está ainda a ser, construída como se quisessem saltar do Império Alemão ["Kaiserreich"] para a Grande Alemanha ["grosse Bundesrepublik"], como se entre as duas épocas não tivesse havido nada, nem Nacional-Socialismo nem RDA. E aí estamos a esquecer a História.

Como a destruição do "Palast der Republik" [edifício emblemático do regime da antiga RDA]...

Isso foi de uma insegurança ideológica tão grande... O edifício devia ter sido integrado de maneira completamente diferente, para que pudesse ser utilizado... e não me refiro apenas ao seu uso como memória. Esse é um bom exemplo para nos apercebermos de quanta ideologia, e insegurança quanto ao passado, ainda existe na Alemanha de hoje.

Ver crítica de livros pág. 42 e segs.

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