"Não queria ser um revolucionário de mesa de café"Entrevista Manuel Costa Cabral

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Rui GaudÊncio

Nos anos 1970, fundou uma das escolas de arte mais importantes do país. Depois, esteve 20 anos à frente do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian. Manuel Costa Cabral reformou-se este ano. A sua história é também a história das artes em Portugal

Nunca teve uma carreira académica, nunca fez mestrados ou doutoramentos, mas foi protagonista de experiências determinantes para a configuração do meio artístico nacional. Aos 70 anos, Manuel Costa Cabral é um nome obrigatório, quando se fala em artes plásticas. Mas não só. Depois de em 1973 fundar a escola de arte independente mais importante do país, o Centro de Arte & Comunicação Visuail - Ar.Co, esteve 20 anos à frente do Serviço de Belas-Artes da Fundação Calouste Gulbenkian, onde, através da atribuição de bolsas e subsídios, possibilitou a várias gerações fazer programas de estudo e trabalho no estrangeiro, desenvolver teses, pesquisas e concluir projectos de todo o género, das artes visuais ao cinema, passando pelo teatro e pela dança. Se a experimentação e liberdade são as suas marcas na Ar.Co, na Gulbenkian o seu nome haverá sempre de ficar associado ao programa de residências artísticas. Berlim, Madrid e Nova Iorque entraram para a geografia da arte portuguesa graças a esta sua "invenção".

Manuel Costa Cabral reformou-se em Janeiro. A sua história é também a história das artes em Portugal. Ele próprio começou por estudar Pintura em finais da década de 1950.

Por que escolheu estudar Pintura?

Comecei por entrar em 1958 para a Escola de Belas-Artes de Lisboa para o curso de Arquitectura e só no final do primeiro ano lectivo é que mudei para Pintura. Era um bocado passar de cavalo para burro, mas não havia outro caminho: era o que eu queria.

Era uma boa escola?

Tinha o nosso mais completo desrespeito e os alunos eram tolerados. Não se podia ir à biblioteca, os ateliers estavam fechados, não havia cantina, e, em certas noites, o director da escola descia aos ateliers e roubava os quadros que os alunos andavam a fazer, porque eram demasiado abstractos.

Censura estética?

Claro! Os professores eram, de facto, muito pouco interessantes.

Deixou de pintar?

Não, fui sempre retomando a pintura. No princípio, pensei que poderia ter uma carreira artística, mas rapidamente percebi que me interessavam muitas coisas, principalmente coisas que estivessem relacionadas com pessoas e com a pedagogia artística. Desde cedo foi muito claro que não poderia dedicar a minha vida a estar fechado num atelier a pintar. A pintura não era tanto uma vocação que eu não podia refrear; fazia parte de uma área que me interessava. Queria estar ligado às artes e não tanto ser pintor.

Não tendo essa vocação de pintor, porque quis estudar Pintura?

Por sugestão do meu irmão: um dia disse-me que em vez de ir para o [Instituto Superior] Técnico, como era minha ideia, devia era ir para Pintura. Nessa altura ele foi preso por causa de um acidente de avião e quem também estava na prisão era o [pintor] Nikias Skapinakis. Ia visitar o meu irmão e o Nikias estava sempre a pintar. Sentava-me ao lado dele a fazer perguntas. Foram as minhas primeiras lições de pintura.

Nessa altura, como era a cena artística portuguesa?

Nos meus anos de Belas-Artes [1958-1962] houve imensos acontecimentos marcantes: a exposição do Amadeo [de Souza Cardoso], a descoberta do Mário Eloy, a apresentação da [mostra] A Nova Escultura Inglesa, no Palácio Foz, a importante exposição de artes plásticas da Fundação Gulbenkian [a I Exposição de Artes Plásticas, em 1957, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa, com uma visão panorâmica das artes plásticas em Portugal]... Mas tratava-se de uma comunidade muito pequena e os artistas eram pessoas com amor à camisola, mas sem a vida facilitada. Os jovens artistas começavam a trabalhar cedo. Nesta altura, os ateliers dos artistas e arquitectos eram muito sensíveis aos jovens, não só por interesse, mas movidos por problemas de ordem técnica: não havia computadores, havia desenhadores e esta era a maneira como artistas e arquitectos começavam a trabalhar. Eu tive a sorte, e o gosto, de trabalhar com o Manuel Lapa e foi assim que entrei no mundo das artes, do qual a escola estava muito longe.

Socialmente, os artistas eram bem vistos ou havia algum tipo de marginalização ?

As pessoas em geral não se davam conta da existência de artistas. [Os artistas] eram todos anti-Salazar e viva-se num ambiente muito fechado e nada internacionalizado. Nessa altura muitos artistas saíram de Portugal para fugir ao regime, à tropa, para poder estudar mais.

O seu grande amigo das Belas-Artes, o pintor Jorge Martins, foi viver para Paris. Nunca pensou ir-se embora?

Sempre viajei muito, mas sempre quis fazer cá.

Depois de estudar Pintura foi dar aulas para o IADE, a convite do Manuel Lapa. Esta primeira experiência no ensino das artes foi importante?

Foi muito intensa. Foi o Manuel Lapa que me chamou para dar aulas de Desenho e foi aí que começaram as minhas principais experiências pedagógicas no campo das artes, mas a primeira [experiência] foi quando a Fundação Ricardo Espírito Santo me pediu para ensinar operários a ler e a escrever.

Como eram essas aulas?

Tinha 70 pessoas numa aula e punha-os a fazer desenho, teatro, performances, passeios. Uma lufada de ar fresco.

Diz terem sido tempos intensos e estimulantes, mas foi nessa altura que foi viver dois meses para os EUA.

Sim, estava a dar aulas há dois anos e interessava-me ir lá fora perceber se havia ou não maneira de ensinar arte. O ensino artístico foi a área em que mais houve experiências pedagógicas e eram estas experiências que me interessavam. Soube de uma bolsa para os EUA e escrevi ao [psicólogo e professor de Psicologia da Arte] Rudolf Arnheim, que era professor em Harvard. Eu adorava o Arnheim, era para mim um mestre. Na carta dizia-lhe estar candidato a uma bolsa e precisava de um tutor; passado uma semana ele respondeu favoralmente. E lá fui ter com ele, apoiado pelo Instituto Internacional da Educação e pela Gulbenkian. Conheci as escolas todas, contactei professores e ia para os arquivos ver trabalhos dos alunos, estudava que tipo de exercícios faziam, critérios de avaliação, etc.

O Ar.Co nasceu nesta viagem?

Se não tivesse feito esta viagem, não teria fundado o Ar.Co. Ir aos EUA foi fundamental para aprofundar as minhas convicções e para aumentar a confiança nas ideias que tinha sobre o ensino das artes.

Foi à procura de quê, exactamente?

Queria perceber melhor se havia ou não uma metodologia do ensino das artes. Pensei que quando voltasse a Portugal ia continuar no IADE, mas quando cheguei o Lima de Freitas tinha sido demitido e a euforia inicial tinha acabado. Foi nesta altura que me convidaram para subdirector, mas não aceitei.

O Ar.Co só surge quando a minha relação com o IADE se deteriorou completamente. Nessa altura começa a formar-se a ideia de fazer uma outra escola, uma ideia surgida num grupo de pessoas do qual eu fazia parte. As ideias eram muito básicas, simples e claras: liberdade, não diploma, [a ideia] de que os artistas não precisavam de graus académicos, etc.

Como começou?

Numa mesa de café em Campo de Ourique. Queríamos fazer um centro de arte que fosse livre. Mas para mim sempre foi muito claro que não queria ser um revolucionário de mesa de café, como havia tantos nessa altura. Entre a primeira conversa e a abertura das portas passaram nove meses. Nesse tempo conseguimos encontrar espaço, obter autorizações, angariar fundos. Fazer tudo.

Com a abertura democrática proporcionada pelo 25 de Abril o modelo que tinham pensado manteve-se intacto?

Esse foi o momento de o Ar.Co se transformar num grande centro cultural. Uma transformação que acompanha a emergência de um mercado de arte e dá força à necessidade de internacionalização. Foi devido a esta abertura, para o exterior, que muitos artistas começam a ir para fora: o acordo do Ar.Co com o Royal College of Arts permitiu a uma geração importante ir para Londres e contactar com novos artistas, conhecer novas linguagens, etc.

Como começou essa relação com Londres?

O Royal College foi ter com a Gulbenkian, porque queria ter uma residência em Portugal. O Fernando Azevedo [director do Serviço de Belas-Artes antes de Costa Cabral] veio ter comigo e apresentou-me a ideia de propor o Ar.Co como local de acolhimento desses alunos. Nessa altura o projecto do Ar.Co em Almada estava a nascer e arranjámos um sítio para essas residências. Depois do sucesso da estadia deles cá, eu fui a Londres e propus que, como forma de pagamento, eles recebessem alunos nossos. Foi assim que a internacionalização se foi assumindo como factor importante. Estourar com as fronteiras do país pequeno era fundamental.

Como funcionava a Ar.Co nessa altura?

Por departamentos, ou seja, era o professor que definia o que se ensinava: quando as aulas eram dadas por um pintor, eram de pintura, quando era um escultor, era escultura. Estávamos interessados em aproveitar a capacidade de cada artista, coisa que nem sempre funciona bem. O fazer era importante, não no sentido de uma prioridade estúpida ao oficinal, mas no sentido da experimentação. Era claro para nós que a escola deveria dar uma base técnico-oficinal que permitisse uma enorme variedade de experiências do fazer.

Como vê as escolas de arte cuja proposta pedagógica é exclusivamente teórica e crítica?

Não me atrai, ainda que se diga que na arte portuguesa há um défice de cultura teórica. O importante é a diversidade de caminhos. Há milhões de diferentes experiências válidas para uma carreira artística. A escola não é uma linha de montagem, mas um sítio onde as pessoas individualmente se desenvolvem.

Durante o tempo que foi director do Ar.Co deu sempre aulas?

Dei aulas até 1983. E depois cansei-me, fiquei sem frescura e sem entusiasmo. Parei de dar aulas e voltei a pintar. Achei que talvez voltando ao atelier surgissem problemas contemporâneos da minha experiência vivencial e problemas que me lembrava de ter tido. Foi uma experiência interessante, mas a pintura não cresceu e a minha pintura ficou um caso interessante.

Foi essa a razão da saída para a Gulbenkian em 1994?

Não. Quanto o Pedro Tamen me convidou para o Serviço de Belas-Artes, a coisa assentou-me que nem um luva. Já estava a preparar-me para sair do Ar.Co., sentia já ter cumprido a minha missão e fiquei muito contente por haver quem se interessasse por aquilo. Percebi que tinha de sair bem do Ar.Co e demorou dois anos a dar-se o salto.

Como foi chegar à Gulbenkian?

O Serviço de Belas-Artes tinha uma grande tradição e fez grandes experiências de direcções colectivas, de órgãos consultivos revolucionários, etc. Havia uma enorme embalagem histórica e muito diversificada: tinha teatro, cinema, pintura, dança, história da arte.

Chegou com algum programa definido?

Uma coisa importante era a discussão sobre a distribuição de bolsas e subsídios para o desenvolvimento das artes. E era importante a clareza de uma linha programática para a atribuição de verbas.

Tentou equilibrar a distribuição das verbas disponíveis para apoios aos artistas?

Quis arranjar linhas onde integrar a atribuição dos subsídios e das bolsas. A verdade é que vi sempre uma enorme desproporção de investimento entre as pessoas que genuinamente têm ideias e querem andar com as coisas e aquilo que o subsídio lhes podia dar. Encontrei exemplos notáveis de valentia, idoneidade e capacidade de dedicação. A disponibilidade de verbas não dava para que o subsídio entregue fizesse sempre a diferença, actuávamos muito mais no sentido de alimentar e fazer circular o tecido cultural.

E o projecto de residências para artistas?

A opção das residências foi lançada há 15 anos. Fui eu que construí todo esse edifício. E ainda penso que, nesse caso, a relação investimento/resultado é fabulosa.

Que comunidade artística encontrou quando chegou à Gulbenkian?

Em 1994 estava tudo muito mais desenvolvido. As galerias estavam a funcionar, ia-se a feiras internacionais e já havia artistas com carreiras desenvolvidas e grande circulação. Quando eu entrei para Belas-Artes, notícias de artistas portugueses na colecção da Tate ou em exposições em importantes galerias de Nova Iorque eram impensáveis. Outra grande diferença é que agora um artista para ser internacional já não precisa de viver lá fora: pense-se no Julião Sarmento ou no Pedro Cabrita Reis, que vivem em Lisboa. Hoje há mais caminhos abertos, mas também há coisas negativas: pessoas que vão depressa de mais sem avaliar os estímulos e as propostas que têm e enveredam por caminhos nada interessantes.

Esteve à frente de dois lugares fundamentais para a construção do que conhecemos como a cena da arte portuguesa contemporânea. Isso honra-o?

Muito. Tive muita sorte por ter estado nos sítios certos, na hora certa. E os meus tempos no Ar.Co e na Gulbenkian foram tempos fabulosos.

Tem novos projectos?

Estou ligado a muitos projectos de formação em África que talvez despontem. Vamos ver. Tenho apreciado o tempo. Vou voltar ao atelier, não sei o que vai acontecer. E em Maio vou ser bolseiro do Goethe- Institut, em Berlim, onde vou aprender alemão.

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