À margem das revoluções islamistas...

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Não nos iludamos, o Islão não se converterá ao nosso modelo e é ilusão pensar que o está fazendo

A Europa, e o Ocidente em geral, continente da liberdade e das revoluções que "mudaram o mundo", já não faz revoluções. Sofre-as, deixa-se surpreender por elas, mesmo pelas que são ainda irradiadas pela sua antiga pulsão, como esta que está vivendo de olhos abertos como uma autêntica primavera dos povos que até há pouco julgava condenados à tirania ou à submissão.

A última revolução europeia - na Europa Ocidental - foi a nossa. Com algumas analogias entre cravos e jasmins, revolução festiva e não sangrenta. Com uma diferença: a nossa foi só - e não foi pouco - "revolução" no sentido etimológico, regresso ao que já conhecera e perdera, um século de parlamentarismo liberal e, com ele, a vivência histórica de política da Democracia que ela supunha ou exemplificava.

De fora da nossa soberba e sublimada convicção de sermos, como ocidentais, a nata da história e os outros, no melhor dos casos, o seu reflexo atenuado ou a sua incompreensível recusa, ficou-nos sempre o não Ocidente. Sobretudo, o mais próximo, o mais objectiva e historicamente inimigo do Ocidente, identificado primeiro como cristianismo e em seguida como o continente das luzes, pelo Islão, que depois da queda de Constantinopla se converterá na estátua do comendador do destino europeu. Com o que isso significou histórica e culturalmente, de pesadelo e de fascínio. Mas, sobretudo, de vertiginoso e mútuo desconhecimento e, mais raro, de intermitente "diálogo", de que o momento-Averrois pode ser o símbolo, como elo imprevisível entre nós e Aristóteles.

Todos sabemos o que noutras ordens o Ocidente deve à cultura islâmica, mas tudo se passou durante séculos, como se habitássemos dois planetas distintos. Um, o do Islão, com o seu período de esplendor e de expansão conquistadora, seguido de uma insólita estagnação, e outro, o nosso, ocidental, de ambição e projecto planetário, prolongando antigos reflexos cruzadísticos em imperialismo de que nós fomos em tempos iniciadores. Ainda não é certo que tenhamos saído desse momento cruzadístico.

Por isso, esta real ou virtual revolução islâmica, de aparente recorte ocidentalizante, por conforme ao seu perfil popular, reclamando e exigindo democracia e, esperemo-lo, alcançando-a, nos surpreendeu tanto. Sem dúvida, excesso de surpresa sob o pano de fundo de uma leitura nossa de ocidentais que julgamos - não sem motivos - exemplificar em termos mais aceitáveis do que outros a nossa milenária utopia democrática, mesmo no momento em que já a não vivemos como "fé viva", como diziam os antigos teólogos. E assim nos sentimos, com alguma razão, confirmados agora por uma revolução que corresponde à nossa boa e má consciência democrática, com o inesperado triunfo do modelo histórico que tanto sangue e tanto combate exigiu de nós, europeus, durante séculos e, mais do que nunca, nos tempos tenebrosos que foram os do século passado.

Como não rejubilar com este surto revolucionário, na margem, mas também no centro, de um Islão tantos séculos separado do Ocidente por uma prática política tão ostensivamente assimétrica daquela que inventou a democracia e nós julgamos destinada, mítica ou misticamente, a influenciar ou a impor-se ao que era para o nosso Ocidente o imóvel Oriente, quer nas suas versões extremo-orientais, quer na sua expressão islâmica. À parte a excepção Atatürk, nenhum sinal convincente e sobretudo tranquilizador para o Ocidente apareceu no horizonte destinado a derrubar o muro simbólico que tem separado o Oriente do Ocidente. Qualquer coisa que se parecesse com uma verdadeira "comunicação" ou diálogo construtivo entre esses espaços históricos. Todavia, do lado ocidental, pelo menos desde Montesquieu, com o seu ensaio de relativização do olhar europeu e a óbvia universalização do olhar do "outro" como persa, tudo parecia propício a que essa distância, sobretudo religiosa, fosse colmatada. E porque seria fatal ou normal que essa travessia fosse milagrosamente recíproca?

Nem o relacionamento comercial e cultural de Veneza com a Turquia, em tempos gloriosos de uma e outra, nem o fascínio e a paixão oriental ilustradas pelos Loti, os Lawrence de Arábia e, antes, pelos românticos a quem o par Bonaparte-Champollion abriu quarenta séculos de esplendor sepulto onde de Chateaubriand a Lamartine e a Flaubert, sem esquecer o nosso jovem Eça, buscámos paraísos eróticos new look, bastaram para um relacionamento normal que só sob a forma turística afinal teve lugar, convertendo esse contacto em qualquer coisa com relevância na ordem político-religiosa do Islão. No fundo, a nossa euforia e natural alegria com o Abril islâmico, vendo bem, é uma versão inconsciente da eterna vocação de querer "converter" ou ilustrar os famosos infiéis. Como a do Islão a de nos impor à força a sua nova lei e de nos recusar.

Não nos iludamos, o Islão não se converterá ao nosso modelo e é ilusão suma pensar que o está fazendo. Porque o faria? Porque perderia o que ele pensa ser a sua alma e em troca de quê? Impregnada de cultura islâmica foi durante quase sete séculos a vizinha Espanha - e em parte, o nosso Algarve e não só - e nem por isso o relacionamento com Marrocos, tão "hispânico" também, deixou de ser de delicado trato.

Para que o nosso contencioso ou o distante contacto com o Irão em geral se tenha convertido ainda mais no nosso "nó górdio", sem nenhum Alexandre para o desatar, a recente acção política e guerreira dos Estados Unidos - ampliando a nossa - converteu o espaço islâmico em espaço privilegiado da sua acção no mundo. Ou melhor, da sua política de vocação universal, como vencedor incontestável da II Guerra Mundial, substituindo o clássico imperialismo inglês em nome do seu democratismo messiânico. Quer dizer, dos seus interesses, assumidos como sendo os da própria Democracia. Do Irão de Mossadegh ao Iraque de Saddam Hussein, essa política justificada por imperativos vitais (petróleo) ao serviço da maior democracia do Ocidente afastou-nos e alienou-nos ainda mais desse mundo islâmico. Entre a osmose com Israel e a aliança privilegiada com a Arábia Saudita ficava hipotecada a nossa mais antiga e sempre difícil relação com o Islão. E assim se mantém.

Talvez o drama em curso que estamos seguindo com tanta esperança, de tal modo o que aí se joga é tão conforme à nossa "mitologia europeia", liberalizante e laicista, que não vemos razão para renegar sem mudar de pele e de destino, seja visto no futuro como o fim do famigerado "europocentrismo", tão glosado pela intelligentsia europeia, em particular pela da sua esquerda extralúcida, convicta de ser la maîtresse-à-penser do Universo. Quer dizer, a emergência de um novo paradigma, realmente mais conforme com uma versão concreta do "universalismo" que instauramos para benefício próprio. Em suma, o de um respeito e de uma aceitação das diferenças políticas, religiosas, culturais ou outras, que todos os povos herdaram de um passado, se não comum, virtualmente convergente, que nos tem servido de destino e como ele incontornável. Já é tempo de aceitar como normal a natural coexistência de diferenças, sem a sombra de fanatismos arcaicos, ou arrogâncias intelectuais, supostamente impostas por um Iluminismo mítico que substituiu, para nós europeus, a referência ainda mais arcaica mas não menos universal ou universalizável de uma "verdade sem nome" de que perdemos o sentido ou a que somos indiferentes. E de que o Islão - "o pobre" - pelos vistos não está disposto a abdicar.

Os jovens árabes de cultura islâmica, naturalmente cultivados e sintonizados em saberes e práticas comuns virtualmente sem fronteiras, que são os actores desta surpreendente "revolução verde", não se revoltaram apenas por mimetismo cultural óbvio. Sobretudo, não o fazem, parece, por conta de qualquer cultura dominante ou de ressentimento em relação ao desfasamento, sentido como intolerável, da cultura dominante. Nesse sentido, a sua rebelião pouco tem de europeia e não podia ter também algo de "americana", pois a América nunca precisou de fazer revoluções. Por isso, não se espere que estas inéditas revoluções islâmicas - diversas entre elas - obedeçam a uma espécie de mot d"ordre ideológico como aquelas de que os europeus, e aqueles que os imitaram, foram exemplo. Revoltam-se por motivos precisos, por injustiças clamorosas, por tiranias tornadas insuportáveis e sem nada de exemplar contra gente que partilha na generalidade a mesma crença. E, mais do que tudo, contra o estatuto de nações inconformes com um destino subalterno, quase terceiro-mundista, com as suas carências gritantes e tão afastadas do momento ainda não muito longínquo em que haviam ressurgido de um passado subalternizado pelo imperialismo europeu ou pelo poder organicamente sacralizado, se não sacro, do antigo Sultanato. Em suma, rebelaram-se, em função de valores e referências próprias, de uma cultura de que são orgulhosos, ética e religiosamente não contestada, por impensavelmente contestável. É assim. É um outro mundo, ou assim nos parece, e nós, que somos de um outro, imaginamos - ou imaginávamos - que somos o paradigma do Bem, do Bom, do Belo, do Justo, etc.

Basta ler qualquer autor representativo dos mais "ocidentalizados" ensaístas ou ficcionistas de cultura islâmica, de Pamuk a Tariq Ramadan, sem falar daqueles que já atravessaram - num e noutro sentido - o "famoso fosso cultural" entre o Ocidente e o Oriente, como Amin Malouf, para saber que as "luzes do Ocidente" - as suas incontestáveis maravilhas e conquistas - não os deslumbram. No interior dos dois ou mais ocidentes que há no Ocidente, um olhar como o de Dostoievsky sobre a nossa gloriosa Europa não era muito diverso. Devemos lamentá-lo e mesmo temê-lo?

É mais interessante supor que esses herdeiros actuais do Islão glorioso e mais pluralista do que depois se tornou - o de Avicena e de Averrois ou dos seus grandes místicos e poetas - já estão para além desse fosso, real mas não fatal, que em termos históricos e políticos se criou entre o Oriente o Ocidente. E que, de outra maneira, os jovens revoltados da Tunísia, do Egipto, da Líbia, do Bahrein, estão entrando também num novo mundo a que nós igualmente, por imperativos de outra herança, devíamos aspirar, para nos libertarmos de fantasmas que não nos deixam dormir. Ensaísta

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