Nas casas de Freud nascia uma nova pessoa

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Interior do consultório de Freud em Londres, com um cadeirão verde, de veludo - sensação de macieza transbordante, onde tudo é táctil Peter Aprahamian/CORBIS/vmi

Conhecer a casa de Londres não é muito diferente de conhecer a casa de Viena. As casas de Freud têm o essencial de Freud. A secretária onde pensou. O divã onde recebeu. A colecção de arqueologia. Os tapetes, as memórias, os mitos. Uma foi transplantada para a outra. Um ano antes de morrer, o pai da psicanálise instalou-se em Maresfield Gardens. A casa da Bergasse ficou desmantelada. Anabela Mota Ribeiro visitou as duas.

Invade-nos a sensação de entrar num espaço secreto. Uma cápsula à margem da vida cá fora. Luz uterina, cálida, pontual. Silêncio, espaço para ouvir uma narrativa, um paciente.

O divã está coberto por um tapete persa feito por uma tribo nómada no século XIX. Uma sucessão de três losangos ao centro. Porquê três? Todas as nossas relações são essencialmente triangulares? Uma tríade de pai/mãe/criança? Será tudo símbolo na sala de trabalho de Freud?

Tons vivos, intensos, sanguíneos. Podia ser uma câmara. Como a do quadro de Caravaggio Anunciação. Os cortinados são também de um veludo pesado, vermelho-sangue. No quadro de Caravaggio, uma mulher, numa alcova, recebe a notícia de um anjo de carne e osso. Na casa de Freud, os pacientes aludiam frequentemente a um parto. O seu próprio. Naquele espaço, nascia uma nova pessoa. As matérias em questão são todas músculo, vísceras, fluído, órgãos. Nada é etéreo.

Sobre o divã está a gravura da famosa aula de Charcot, com uma mulher que desfalece nos braços daquele que a observa. A plateia assiste, curiosa. Não há plateia nas sessões de psicanálise. Tudo pode ser dito. Sem juízos, sem recriminações. Mas as neuroses, os caminhos do inconsciente, os não-caminhos, os não-ditos, são percorridos. Há quatro, cinco almofadas. Ocre é a cor dominante. Há uma manta aos pés do divã, que corrobora a impressão de aquilo poder ser uma alcova, de aquilo poder ser uma câmara. Mais o outro tapete que forra a parede, contígua, e que cria uma ilusão de prolongamento. De invólucro. Mais o imenso tapete que atravessa o chão, desde a secretária até à biblioteca.

Porquê um tapete a revestir o mais famoso divã do mundo? Especulações. O matizado de diferentes temas, colorações, a tessitura complexa, os efeitos elípticos, os efeitos visíveis a olho nu, os microscópicos, os que estão entranhados, as linhas regulares, as formas enigmáticas. As diferentes tramas que nós somos, que nos habitam.

À esquerda do divã, quem olha de frente, está o cadeirão de Freud, verde. Também de veludo. Sensação de macieza transbordante. Tudo é táctil e até convidativo. Atrás. Para criar distância emocional do paciente. Os olhos vinculam de outra maneira. Sobre o cadeirão, uma gravura do Fórum Romano. Ruínas. O emaranhado do passado no presente, o confuso mundo psíquico, a coexistência de tempos, personagens, medos, desejos, a omnipresente fantasia. Os estilhaços, os blocos que pesam chumbo. As colunas que se mantêm imponentes, apesar da desolação circundante. Mas também a vida que se ergue a partir daquele campo de destruição. Por todo o lado, a celebérrima colecção de peças antigas de Freud. Dezenas de peças que aparecem para onde quer que se olhe, e que nem por isso transmitem uma sensação de claustrofobia. Estátuas de terracota, bronze, outros materiais. Peças egípcias, sobretudo, vasos gregos, bustos. Como se fosse um museu, em casa. Como se fosse um passado, transportado até esta última viagem. (Já lá vamos, à viagem, Viena, Londres.)

A evidente analogia com o trabalho arqueológico. Desenterrar o passado, resolvê-lo sob a luz do dia, do presente. Mitos por todo o lado. O famoso Édipo, que deu nome ao complexo, contempla a esfinge num quadro de dimensões reduzidas, a partir de um desenho de Ingres. Um baixo-relevo da deusa Gradiva, assim que se transpõe a porta. Uma imagem de uma Virgem com o Menino de Da Vinci. Um pequeno Eros, personificação da leveza, da graciosidade.

O espaço está subdivido em duas partes, mas o essencial parece concentrar-se no rectângulo da esquerda, mais próximo do jardim. A dois passos do divã, fica a secretária, com os óculos de aro fino, um porco-espinho que pica só de olhar, um cinzeiro e o resto de um charuto, a cadeira antropomórfica desenhada para Freud, em 1930 (parece uma escultura de Henry Moore). Os livros por detrás, uma parte dos livros. Goethe, o sábio dos sábios, edições completas, nas prateleiras centrais. Shakespeare, Dostoievski, tragédias gregas.

Entre os livros estão retratos de mulheres importantes na vida de Freud. Entre os retratos, o de Lou Andréas Salomé (musa de Rilke, de Nietzsche, escritora, psicanalista) e a princesa Maria Bonaparte.

Fixemo-nos nela. Quando a ameaça nazi pendeu sobre Viena, quando a suástica foi afixada nas ombreiras das portas e os primeiros judeus perseguidos e mortos, os Freud decidiram partir para Londres. Sigmund Freud, que sofria de um cancro, queria "morrer em liberdade" (escreveu numa carta). Foi a amiga Maria Bonaparte, descendente do imperador, mulher do Príncipe Jorge da Grécia, bem relacionada nos círculos do poder europeu, que interveio e se empenhou na mudança "das vidas" da família. Graças a ela, foi possível transladar a vida de Viena para Londres (com uma breve paragem em França).

Dedicação incestuosa

Talvez o termo transladar não seja excessivo. Todo o cenário da vida quotidiana da Bergasse, 19 seguiu para o número 20 da Maresfield Gardens. O mobiliário, uma imagem do Monte Fuji que representa o consciente e o inconsciente, souvenirs alpinos, recordações dos verões em família, os despojos. Todo o material de trabalho. O divã, claro. Freud recebia os pacientes em casa (muitos psicanalistas o fazem). As peças foram dispostas nos seus lugares de sempre. Envolveram Freud numa atmosfera familiar.

Em Viena, a memória da casa, a disposição dos objectos ficou fixada numa colecção de fotografias que hoje revestem as paredes. O que há em Viena, se tudo seguiu para Londres? Todo o mobiliário da sala de espera, o bengaleiro, um enigmático baú, a bengala, o chapéu à entrada. Doações de Anna, para que a casa-museu não ficasse completamente destituída do que ali se escreveu, disse, viveu, de uma identidade. Restam meia dúzia de objectos, fotografias, alguns livros, muitos papéis. Por cima e por baixo, no prédio da Bergasse, vivem famílias. É um banal prédio de habitação. Ao entrar, junto à campainha, há uma pequena tabuleta que indica que ali viveu o dr. Freud. Tocamos à campainha como se toca à campainha de uma pessoa que se conhece e que se vai visitar. Nada nos atira para um museu onde viveu uma figura fundamental para a compreensão do mundo moderno.

A chegada a Londres. "20 Maresfield Gardens será a nossa última morada neste planeta, mas não poderá ser ocupada antes do fim de Setembro. A nossa casa!... E demasiado bonita para nós...", lê-se numa carta de Agosto de 1938.

É uma casa de dois pisos, com um amplo jardim nas traseiras. Foi convertida em casa-museu quando da morte de Anna Freud, nos anos 80. O piso térreo é dominado pelo espaço de trabalho de Freud. Intacto, como se os ponteiros estivessem parados num relógio. Sob uma estrutura de vidro rente ao jardim, tiram-se bilhetes, vende-se todo o tipo de merchandising (há pins onde se lê: "Nunca é tarde para ter uma infância feliz").

No espaço intermédio, entre dois lances de escadas, a mulher de Freud, Martha, costumava ler, ver a vida que passava na rua, junto às plantas, no metro quadrado mais ensolarado da casa.

O andar de cima é dominado pelo espaço de trabalho de Anna, a filha seguidora de Freud. O quarto de dormir de Anna, como outros compartimentos da casa, estão fechados ao público.

Anna recebia num compartimento amplo onde tudo arranha. A aspereza das mantas que cobrem o divã - sente-se com o olhar. O tear que assombra o divã (como se fosse uma imensa tarântula?). Ambiente espartano, rústico.

Tinha pelo pai uma dedicação incestuosa. Zelou pelo seu legado até à sua morte. Não podendo tocar o pai, quem quereria tocar a mais nova dos seis filhos de Freud? Mas o seu contributo para a psicanálise infantil é importante, e uma imensa biblioteca sobre o tema cobre a parede em frente ao divã. Também lá está uma fotografia de Lou Salomé, admirada pelo pai, visita de casa. Uma rival. Um modo peculiar de conviver com o ciúme? Terá existido ciúme? Que fez ela com o ciúme?

Anna foi psicanalisada pelo próprio pai, o que contraria todas as regras que hoje conhecemos, que impõem uma distância asséptica entre o paciente e o analista. Anna foi engolida pela existência do pai. Mas como sobreviver a um pai como Sigmund Freud?

Morreu nem um ano depois de se ter instalado em Maresfield Gardens, em 1939. Numa cama improvisada no jardim, coberta com uma manta, a revigorar ao sol. Em Viena, era a guerra.

anabela.mota.ribeiro@publico.pt

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