Mourinho descobriu que o treinador não é a coisa mais importante no Real Madrid

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Mourinho manda no balneário, mas apenas isso. Reuters (Arquivo)

José Mourinho é o treinador com mais poder que o Real Madrid já teve em toda a sua história. Pelo seu currículo, pelo seu carácter e mediatismo, pela sua suculenta folha salarial e até pela Bola de Ouro com que a FIFA e a revista France Football decidiram recentemente que passasse também a premiar a função. Mas, como confidenciou ao P2 um jornalista espanhol que segue de perto a equipa madridista, não tem tanto poder como ele entende que seria razoável e necessário.

Mourinho manda no balneário, mas apenas isso. E tem sido, em boa parte, a tomada de consciência e os reflexos desta realidade que o têm deixado algo atormentado e que já o fazem dar sinais de que pode bater com a porta no final da época, depois de ainda há poucos meses ter assinado um contrato, até 2014, que o confirma como o técnico mais caro do mundo (dez milhões de euros livres de impostos).

Mourinho começou a perceber no que se estava a meter à custa de pequenos incidentes. Não muito significativos, mas que, acumulados, foram funcionando como alertas e indícios importantes, sinais até de algum sentimento anti-português. Como quando descobriu que o treinador do Real Madrid não tinha lugar na zona VIP de estacionamento automóvel. Ou quando decidiu que, nesse dia, não ia trabalhar ao volante do carro que recebeu de uma marca que tinha um contrato de patrocínio com o Real Madrid: ainda não tinha acabado de estacionar o seu poderoso Ferrari (uma prenda de Roman Abramovich) e já tinha surgido um qualquer funcionário a barafustar e a dar-lhe ordem para retirar a viatura, porque naquele local só podiam estacionar Audis. Dessa vez, Mourinho levou a sua avante, como voltou a levar quando estava a iniciar um treino na Cidade Desportiva Valdebebas e logo surgiu, apressado, um director de instalações a dar ordens para que fossem retirados os cones e a restante parafernália de treino porque, dizia, naquele dia a sessão tinha de decorrer noutro relvado que ele próprio havia determinado.

Mourinho nunca tinha vivido situações idênticas em dez anos de carreira, o que, conhecendo-se a sua personalidade, é bem capaz de lhe ter deixado os nervos em franja. E os seus adjuntos (todos portugueses, com excepção de Aitor Karanka) também ficaram surpreendidos quando perceberam que não tinham direito a receber um Audi, ao contrário do que aconteceu com todo o plantel. Silvino Louro, técnico de guarda-redes, teve ainda uma experiência a que não estava habituado: solicitou mais dois bilhetes para um jogo caseiro do Real Madrid e, no final do mês, o valor dos mesmos lá vinha descontado no recibo de vencimento.

Como uma multinacional

“O treinador não é a coisa mais importante no Real Madrid.” A frase do referido jornalista espanhol não representa nenhuma descortesia para Mourinho ou para qualquer um dos reputados treinadores que o antecederam. Significa antes que, “mais do que um clube, o Real é uma empresa”. E de razoável dimensão, como se percebe pelos 450 milhões de euros de orçamento, três vezes mais do que gastam todos os clubes da liga portuguesa. Os últimos números divulgados pelo próprio clube apontam para um encaixe de 150 milhões só em receitas de marketing, sendo que a bilheteira irá render esta época 140 milhões e os direitos televisivos 120 milhões.

Apesar de continuar a ser um clube em que o peso dos sócios é determinante, por – tal como o Barcelona e o Athletic de Bilbau – não ter aderido à transformação em sociedade anónima desportiva (SAD), a própria estrutura dirigente do Real Madrid acaba por fazer lembrar uma qualquer multinacional. E isso contribui para parte da impessoalidade que causa estranheza a Mourinho. O presidente Florentino Pérez, além dos vice-presidentes e vogais que formam a sua direcção, rodeou-se de um vasto conjunto de personalidades, várias delas antigos craques da bola que recebem bom dinheiro para ocuparem cargos numa complicada pirâmide de poderes. Há um director- geral da presidência (Manuel Redondo), um director- geral executivo (José Ángel Sánchez), um director de relações internacionais (Emílio Bultrageño), um director desportivo (Miguel Pardeza) e um assessor do presidente (Zinedine Zidane). Mas quem acaba por estar mais próximo e por influenciar de forma mais eficaz Florentino Pérez é Jorge Valdano, o argentino que já foi jogador e treinador do Real Madrid e que o tinha acompanhado na primeira passagem pela liderança do clube, num período (2000-06) em que os madridistas ficaram conhecidos por “galácticos”.

Valdano ocupa o cargo de director- geral e adjunto para o presidente, mas acaba por funcionar como a alma mater de Florentino no que se refere às opções puramente futebolísticas. Porque o presidente é um magnata da construção civil e um gestor de sucesso em várias empresas, mas não tenta ser, nem passa por ser, um especialista no que ao futebol diz respeito.

Mas foi Florentino que decidiu dispensar Manuel Pellegrini após o técnico chileno ter batido o recorde de pontos somados pelo Real Madrid, mas não ter conseguido melhor do que o segundo lugar na liga espanhola, atrás da máquina de jogar futebol que se chama Barcelona. E foi também o presidente que aceitou como bons os conselhos, entre outros, do empresário Jorge Mendes e do próprio Cristiano Ronaldo, quando optou por contratar José Mourinho. Contra o que parecia ser a vontade de Valdano, que, enquanto emérito cronista em vários jornais e comentador televisivo, sempre depreciou o futebol praticado pelas equipas lideradas pelo treinador português.

Acresce que a entourage dque rodeia o sempre muito desconfiado Mourinho passou a suspeitar de que boa parte das críticas publicadas nos jornais resultavam de algumas informações saídas do próprio clube. Aliás, não deixa de ser sintomática uma notícia publicada recentemente no jornal as, que dizia que o técnico português teria proibido Valdano de entrar no balneário, antes e após os jogos, e de acompanhar a equipa nas deslocações e nos treinos.

Antes, depois de um jogo com o Sevilha no Santiago Bernabéu, já Mourinho havia dito que a estrutura dirigente do Real Madrid não funcionava e que “ninguém defendia a equipa”, no que foi entendido como mais um ataque às arbitragens (algo que não cai bem num clube que se vê muito acima dessas minudências) e ao próprio Valdano. Mourinho pediu uma reunião com o presidente. Foi crucificado nos jornais, acusado de “ególatra infinito”, de ter “vocação absolutista” e de ter colocado Florentino numa “situação indelicada”. Sentindo-se confortável, Valdano aproveitou o facto de Mourinho não ter utilizado Benzema para deixar escapar um “havia um ‘nove’ no banco...”, logo após um empate em Almeria. E alguns jornais insistiram nas críticas a Mourinho por não dar oportunidades aos jovens da cantera, tese que se sabe ter em Valdano o maior defensor, ele que lançou o agora veterano Raul.

A declaração do argentino funcionou como um detonador final. Mourinho respondeu que já é demasiado “crescido para receber recados através dos jornais”, que não falava com Valdano e que reportava “directamente ao presidente e a José Ángel Sánchez”. Já depois de ter amenizado uma declaração em que Mourinho dava a entender que podia deixar o clube no final da época, o Real anunciou, na terça-feira, a contratação do avançado togolês Adebayor.

O peito às balas

Mourinho ganhou esta guerra, mas já depois de ter visto inflacionado o número de críticos na imprensa. “Mourinho convive há alguns dias com a sensação de que a liga espanhola lhe está a fugir por entre os dedos”, pode ler-se no El País. Santiago Segurola, o sempre respeitado adjunto do director da MARCAarcaARCA, também não lhe perdoou, escrevendo que “era uma questão de tempo – de muito pouco tempo –, até que Mourinho se revoltasse contra o clube”, atacando ainda a “intenção delirante” que o “Sspecial Oone” teve de “compaginar o trabalho de técnico português com o de seleccionador português” e a “irresistível vontade de utilizar o jornalismo como veículo das suas obsessões”.

Segurola sabe do que está a falar, porque, de facto, Mourinho teve problemas com quase todos os presidentes com quem lidou. No Benfica, aproveitou uma vitória contra o Sporting para forçar Manuel Vilarinho a renovar-lhe o contrato, no que foi entendido pelo líder benfiquista como uma inadmissível chantagem. No Chelsea, beneficiou durante algum tempo do “efeito guarda-chuva” provocado por Peter Kenyon, o experiente director desportivo que esteve na base da sua contratação e que, nos três primeiros anos, amenizou os choques com o instável Roman Abramovich. Mas, apesar de boa parte da imprensa britânica se mostrar embevecida com a gravata ligeiramente desapertada e o sobretudo de caxemira da Armani, a rotura foi inevitável, embora Mourinho e o multimilionário sejam hoje amigos. Com Massimo Moratti, assistiu-se a um processo idêntico em Itália. Quem atenuava os choques era o director do futebol Marco Branca, mas a cisão esteve iminente a meio do segundo ano à frente do Inter de Milão, antes da caminhada final para a vitória na Champions. E hoje Moratti já diz que “Mourinho é das pessoas mais sérias e respeitáveis do mundo do futebol”.

No FC Porto, a rotura só aconteceu pouco antes da vitória na Liga dos Campeões, em Gelsenkirchen. As relações chegaram a estar completamente estragadas com Pinto da Costa – mesmo que hoje estejam mais ou menos normalizadas ––, mas seria o próprio Mourinho a reconhecer, em Dezembro de 2009, em entrevista ao PÚBLICO: “Dois anos no FC Porto habituaram-me mal.”. Porque, explicou, sempre deu e dará “o peito às balas”, mas no Dragão tinha o conforto de ver aparecer sempre alguém a socorrê-lo “com um colete à prova de bala”.

Seja ou não verdade que Mourinho tem vindo nos últimos tempos a matutar na possibilidade de deixar Madrid em Junho, isso acaba por ter uma importância muito relativa. Porque, com ele, a realidade está sempre em mutação e nada é definitivo. A propósito das suas mudanças de humor, mantém-se actual a observação que um jornalista italiano fez ao PÚBLICO há menos de um ano: “Tudo isto é um jogo, um teatro em que ele coloca a máscara e a retira quando lhe dá jeito.”. Daí que não se estranhe ler no livro Mourinho – Anatomia de Um Vencedor, de Patrick Barclay, a declaração de Desmond Morris, conhecido pelos seus estudos sobre o comportamento animal e humano: “Se, por hipótese, fosse necessário escolher alguém para interpretar o papel dele num filme, teria de ser James Dean.” . Porque Mourinho é cismático e rebelde, mas também porque, “se ele fosse feio e baixo, o estilo dele não seria tão eficaz...”...

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