O flamenco perdeu o seu último génio

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fotos: nuno ferreira santos

Revolucionou tanto o flamenco quanto lhe honrou a tradição. Ficará para a história como uma das grandes figuras de um canto imortal. Por Nuno Pacheco

Ainda é possível recordá-lo no São Carlos, na noite em que pisou o mesmo palco que muitos tenores para arrebatar a plateia com um concerto portentoso. Foi este ano, no dia 15 de Setembro, na tão aguardada estreia portuguesa de Enrique Morente, aos 67 anos. Pelo calor dos aplausos finais ficámos, todos, com a ideia de que o "cantaor antigo e moderníssimo" voltaria a Portugal para outros concertos, outros palcos, outros aplausos. Não voltará. Morente, um dos génios do cante, um homem que revolucionou tanto a linguagem do flamenco quanto lhe honrou a tradição, morreu anteontem numa clínica de Madrid, em consequência de uma operação a um cancro no estômago, no passado dia 10, sexta-feira. Depois dessa, foi necessária uma outra, nove horas depois, devido a uma hemorragia. Desde esta última Morente esteve em coma induzido até ao anúncio da sua morte. A família alega negligência médica, aguardando os resultados da autópsia.

Mas essa é já uma história para lá da outra, essa sim brilhante, que constituiu a sua vida. Nascido em pleno dia de Natal, a 25 de Dezembro de 1942, no bairro de Albaicín, Granada, e no meio da Segunda Guerra Mundial, Enrique Morente Cotelo começou a cantar nos meios do cante local ainda criança. "Dizem que eu cantava antes de ter memória. Cantei sempre, desde muito pequeno." Mas foi na Zambra madrilena, para onde se mudou por volta dos 14, 15 anos, que fez séria aprendizagem dos segredos do cante com Pepe de la Matrona, que tinha sido pupilo do lendário António Chacón.

Aos 21 anos, em 1964, abandonou de vez a profissão de sapateiro (que foi também a profissão de Chacón) para se dedicar por inteiro ao cante, já como profissional. Nesse mesmo ano, actuou na Feira Mundial de Nova Iorque e em 1970, com Manolo Sanlúcar, tornou-se no primeiro cantaor a actuar no Ateneo de Madrid. Prémios foi-os somando à mesma velocidade com que a sua inteligência e sensibilidade abraçavam projectos que revolucionavam o flamenco. Nessa mesma década, a de 70, ele foi, com Paco de Lucia e Camarón de la Isla, um dos três grandes mestres da última revolução no cante jondo.

E essa revolução passou pela abordagem dos poetas. Foi ele, aliás, o primeiro cantaor a musicar grandes poetas, e não somente espanhóis, pelos quais tinha especial afeição. Caso de Federico García Lorca, a que dedicou o seu concerto em Lisboa, mas também Miguel Hernández, Antonio Machado, Rafael Alberti, Nicolás Guillén, Lope de Vega. Ou Al-Mu"Tamid, poeta do Al-Andaluz. Ou o poeta e cantor canadiano Leonard Cohen.

Celebrada heterodoxia

Mas a abordagem assumidamente heterodoxa de Morente à música levou-o a projectos para lá do campo estrito do flamenco. No seu disco Omega, de 1996, ousou gravar com o grupo de rock granadino Lagartija Nick (mas também com figuras do flamenco como Vicente Amigo, Tomatito ou Cañizares), recriando juntos a poesia nova-iorquina de Lorca e canções de Cohen. Num depoimento ontem publicado no diário El País, que dedicou quatro páginas à evocação da vida e obra de Morente, a célebre cantaora Carmen Linares recordou assim esse disco: "Quando fez Omega, que é uma jóia, não me chocou, porque ele era muito inteligente e não se punha a inovar sem ter uma ideia. Estávamos sempre à espera dos seus discos, a ver com o que nos surpreenderia."

Esse era o sentimento geral face à sua obra, mesmo por parte daqueles que, velada ou abertamente, lhe criticavam as heterodoxias. Todos esperavam que ele os surpreendesse. Até o genial Camarón arrastava com frequência outros músicos para ir até casa de Morente, só para ver "o que ele andava a preparar". E era com esse espírito presente que Enrique se abalançava aos mais insólitos trabalhos: uma gravação de Misa Flamenca onde misturou o cante a cantos gregorianos; ou trabalhos em comum com os Uakti, no Brasil; ou com o também já desaparecido baterista Max Roach, um dos grandes do jazz.

Estrella e Kafka

Na entrevista que concedeu ao P2 em Setembro, Morente afirmou, a este propósito: "Sempre concedi a mim próprio uma grande liberdade, o que me dá a entender que tudo é possível. O que importa é que o façamos com o coração, e sempre mudando." Nesse "fazer com coração" estava também uma das suas mais recentes paixões: a Internet. "A comunicação chegou a níveis impensáveis, e isso proporciona a todos os que fazem música, seja fado ou flamenco, música cubana ou étnica, uma oportunidade para se misturarem mais facilmente, mas mantendo vivo nas suas criações o sentimento."

Numa outra declaração sua, citada pelo El País, terá dito a este mesmo propósito: "Quando eu canto o cante clássico, dou a volta ao que já está feito; quando faço uma coisa pela primeira vez, é uma criação. Funciona em várias vertentes: coisas que já fiz, que não fiz, de dentro do flamenco, de fora. Sobretudo bebo do cante antigo. Essa é a minha base real, o meu único campo de conhecimento verdadeiro, que utilizo para criar o meu próprio cante. Parto muito directamente do cante jondo [que, como o nome indica, exprime o que há de mais profundo no espírito popular desta arte]. Flamenco é tudo o que canta um cantaor. Na arte não se deve colocar barreiras."

No site oficial de Morente (www.enriquemorente.com) podem ler-se estas palavras: "Acabei de produzir o disco de Estrella [Morente, sua filha] e o meu próximo disco não o comecei ainda. Há pouco, fiz música para A Metaformose de Kafka, para o bailado que montou o grande bailaor Israel Galván." Mas previa-se o lançamento, em Março, de El Barbero de Picasso, mais um trabalho (um CD acrescido de um DVD) que Morente dedicaria ao pintor (o anterior, Pablo de Málaga, fora editado em 2008). O futuro destes trabalhos e edições só mais tarde deverá ser decidido, passado o luto.

Casado com a bailaora Aurora Carbonell, Enrique Morente foi pai de três filhos, dois deles ligados ao flamenco, Estrella Morente e Enrique Morente Carbonell "Kiki" (que o acompanhou no concerto em Lisboa, no coro e palmas) e Soleá, licenciada em filologia. Velado e lembrado ontem em Espanha, ficará sepultado em Granada, terra onde nasceu e de onde herdou a alma que o fez grande e feliz.

Voltando ao El País de ontem, o jornalista Miguel Mora escrevia, a fechar o seu texto sobre Morente: "O seu país conhece-o pouco e mal. Mas o seu humor e generosidade abriram mentes; a sua mescla de compromisso, génio e boémia ensinou muitos a resistir, crer e crescer; e a sua heterodoxia de enorme precisão ficará como um modelo de liberdade."

José Mercé, por sua vez, cantaor como Morente e seu amigo desde há muitos anos, escreveu: "Hoje Enrique podia dar-se ao luxo de fazer o que lhe dava na real gana. E fazia muito bem, com toda essa experiência e sabedoria que tinha. Foi um cantaor de muita classe, muita elegância. A sua inovação deixou escola entre os jovens." Mas também deixou esta nota, amarga e irónica: "Agora dirão glória bendita, dirão que era um génio... E foi, mas di-lo-ão os mesmos que alguma vez o criticaram por arriscar."

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