O fecho da Biblioteca Nacional

Foto

Valeria a pena fazer coincidir o fecho com uma coordenação entre os ministérios da Cultura e da Ciência e Universidades

A sala de leitura geral da Biblioteca Nacional de Lisboa fecha, hoje, por um período de cerca de nove meses. Até Abril do próximo ano, manter-se-á aberta a sala dos reservados, onde se podem consultar uma colecção de cerca de 13.000 manuscritos, centena e meia de espólios e alguns dos mais raros livros impressos existentes em Portugal. Uma vez que a frequência diária desta mesma sala não ultrapassa uma dúzia de leitores, não se pode dizer que este adiamento funcione como uma compensação.

O fecho, apresentado pela direcção da BN como inevitável, sobretudo por razões de ordem técnica, tem consequências gravosas sobretudo para os investigadores mais jovens, que preparam as suas teses de mestrado e doutoramento. Um abaixo-assinado com cerca de três mil signatários e algumas cartas de protesto poucos ou nenhuns efeitos produziram, face às decisões previamente tomadas pela referida direcção e que foram comunicadas tarde e a más horas.

Seria, no mínimo, fastidioso repetir aqui os mesmos protestos. Penso que as razões que levaram a direcção da BN a responder, repetindo apenas os calendários e motivos técnicos para o fecho previamente estabelecidos - sem querer dialogar e vir ao encontro dos seus leitores, como uma cultura democrática devidamente digerida deveria impor, aproveitando a oportunidade para lançar um debate sério sobre as funções e estratégias da instituição - fazem parte de um quadro mais vasto. Ora, é este mesmo quadro que se impõe analisar, se quisermos compreender o que significa realmente o fecho da BN.

Começo pelo elo mais fraco de uma cadeia de interesses e responsabilidades: o dos leitores. Estes são, no essencial, constituídos por estudantes, jovens investigadores e professores (sendo os últimos, aliás, em número estranhamente reduzido) orientados para as humanidades e ciências sociais. Todos estes leitores, em conjunto com alguns grupos de investigadores estrangeiros, nomeadamente brasileiros e espanhóis, não parecem suscitar grande atenção junto dos poderes públicos e das elites políticas, as quais se caracterizam por uma impressionante e mais do que evidente falta de interesses culturais e científicos. Uma suposta associação de amigos da BN foi criada para congregar esforços por parte dessas elites, mas os seus trabalhos parece que se esgotaram no anúncio da sua própria criação. Neste quadro, não é de estranhar a desconsideração a que os leitores da BN foram sujeitos.

Claro que se poderá sempre objectar que, se os leitores se encontram ligados às universidades de letras, humanidades e ciências sociais, por que razão as instituições académicas não se conseguiram apetrechar com as bibliotecas para servir os que a elas estão ligados? Ora é inegável que, durante as tutelas do ministro Mariano Gago, a pesquisa universitária nas mesmas áreas foi contemplada com investimentos de monta que, pelo menos, permitiram lançar na investigação centenas de jovens. Porém, a fragmentação dos apoios em projectos e a escala, tantas vezes ridícula, da pequena biblioteca, associada a um centro ou instituto, não podem constituir a base para uma política de financiamento público das bibliotecas. A organização de bibliotecas de pesquisa não é compatível com uma escala reduzida, ao sabor dos interesses de pequenas clientelas que determinam o funcionamento das universidades.

Valeria a pena fazer coincidir o fecho da BN com uma coordenação entre os ministérios da Cultura e da Ciência e Universidades (relançando, se ainda existe, o Conselho Superior das Bibliotecas). Para uma população como a de Lisboa, com um público potencial de cerca de 30.000 leitores, a existência de uma grande biblioteca dotada dos meios suficientes ficaria abaixo de uma biblioteca média de uma universidade estatal norte-americana. Estou, aliás, convencido que, se se assumisse uma política desta natureza, a concentração de recursos permitiria uma eficácia acrescida e enormes poupanças em termos de gastos gerais. De qualquer modo, a BN de Portugal não pode continuar a viver uma tão grande descapitalização: ao ter de servir um público de leitores ligados às universidades, deveria concentrar recursos financeiros que lhe permitiriam preservar e tornar acessível o património bibliográfico português e procurar alcançar o nível de qualquer biblioteca nacional europeia.

Se as questões financeiras, sobretudo em época de cortes, são importantes, nelas não se esgota o funcionamento das instituições. Claro que são elas que explicam o fecho, ou seja, seria muito mais caro manter a BN aberta, ao mesmo tempo que se fariam as transferências e a renovação dos equipamentos ligadas à ampliação. Mais. As obras em curso representam um investimento significativo. Porém, o bom funcionamento de uma instituição também não se reduz aos seus novos espaços de betão, pois depende essencialmente de quem lá trabalha. Ora, esta direcção - a exemplo das anteriores - tem procurado a estabilidade política com a tutela à custa de uma alienação dos seus quadros e do silêncio acerca das enormes carências de pessoal. Uma política de manter a porta aberta, cujo esforço tem acabado por recair sobre um corpo de funcionários dedicados e com um enorme potencial, tem caracterizado sucessivas direcções de comissários políticos. Que me lembre só Francisco Bethencourt, enquanto director, bateu com a porta e não alinhou neste regime de calar para consentir... E o resultado está à vista: pessoal envelhecido, reformas antecipadas em catadupa devido à desmotivação e falta de envolvimento, com consequências irreversíveis na falta de transmissão dos saberes acumulados de geração para geração, falta de estratégia quanto ao futuro dos bibliotecários e à sua internacionalização, enfim, um quadro de pessoal extremamente deficitário e alienado, pessoal cuja realização profissional, em muitos casos, sai frustrada não por incapacidade ou vontade próprias, mas porque assim alguém determinou.

Deixo de lado a interrupção de programas, publicações e iniciativas que hoje fazem parte das responsabilidades de qualquer biblioteca nacional. Ora, a nossa BN já nem revista tem, para não falar na catalogação atrasada, muitas vezes de fraca qualidade, restauro e uma política consistente de aquisições de espécies bibliográficas e de manuscritos de elevado valor patrimonial que seremos incapazes de legar às futuras gerações. Um panorama trágico de miséria que faz chorar muitos dos investigadores estrangeiros que nos visitam e que nos deveria envergonhar pela falta de sentido de responsabilidade. Resta saber por que sobrevivem as exposições - tendo de se reconhecer que algumas, como a que decorre sobre a República, de nível excelente. Estou há muito convencido que, na ausência de políticas culturais de sentido patrimonial, o que fica são apenas as pequenas estratégias comemorativas e de circunstância destinadas a vender a "imagem".

Valeria a pena aproveitar o fecho para repensar o lugar da BN (e, em menor escala, das riquíssimas mas não menos menosprezadas Biblioteca da Ajuda e da Biblioteca Pública de Évora) na cultura e na investigação científica em Portugal. Pouco adianta repetir que a responsabilidade está no Ministério da Cultura, que tem a tutela da BN. Não se espera de comissários políticos, ministros ou seus dependentes, com pouca ou nenhuma influência na repartição das verbas, que milagrosamente se transformem, assumindo políticas patrimoniais e de criação de bibliotecas modernas. Aliás, a recente e absurda decisão de fundir a BN com a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, que tem a seu cargo um programa de criação de uma rede de leitura pública, do qual o país necessita desesperadamente, revela incapacidade ou mesmo incompetência para saber o que está em jogo tanto de um lado como do outro.

Enfim, a Biblioteca Nacional que é de todos nós, mas sobretudo de quem nela trabalha, tem as suas responsabilidades acrescidas pela memória de directores como Jaime Cortesão, bibliotecários como Raul Proença e sucessivas gerações de qualificados funcionários (como Isabel Cepeda, Manuela Domingos, Teresa Mónica etc.) que souberam manter viva uma tradição bibliográfica portuguesa. Por isso, a BN não se pode confundir com o papel de comissários políticos dispostos a todos os fretes; de tutelas sem objectivos de defesa patrimonial e incapazes de assumir responsabilidades na modernização do património bibliográfico; nem tão-pouco com a incultura das elites e dos dirigentes, cuja influência política se esgota numa espécie de fachada áulica e de circunstância, mais ou menos comemorativa.

Numa palavra, como leitor assíduo de há trinta e tal anos da BN, continuarei a lutar pela defesa de todos aqueles que - com visão, dedicação e mau grado a falta de condições - nela trabalham e me merecem todo o respeito. Historiador

Sugerir correcção