Belo Horizonte: Retrato em branco e preto

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Esta é uma das dezenas de favelas de Belo Horizonte, lugares onde os habitantes “ficam com vergonha de falar favela, então falam periferia” Sérgio Falci

Chacal e Zaika têm 20 anos na cidade onde Dilma Rousseff nasceu. Hoje, como toda a gente, vão votar, mas não nela. São mulatos da favela numa cidade em que os brancos estão no centro e os negros à volta. Carlos e Christiane, brancos e afortunados, concordam. No Viaduto, no Maletta ou no Mercado há mistura, mas faltam lugares assim.

1. O Viaduto

Os mineiros abreviam. Belo Horizonte é Bê-Agá. Então domingo de manhã em Bê-Agá, o templo neoclássico da Igreja Universal do Reino de Deus fervilha numa esquina. “Só o terreno custou milhões, no sítio mais caro da cidade!”, diz Carlos, com aquele jeito espantado que mineiro tem, mesmo quando já tem 53 anos, mesmo quando já veio do interior há muito.


Carlos Herculano Lopes, escritor e ainda jornalista no Estado de Minas. Um dia destes vai para a fazenda cuidar das suas 200 cabeças de gado. Até lá, é um menino grisalho, e quando se senta para uma cachaça com cerveja, as histórias podem não acabar.

O táxi passa em frente ao Mercado Central, onde um cartaz anuncia o programa para mais logo: “26 de Setembro, 16h, Funk do Mercado. MC Marcinho. DJ Tubarão. Buchecha.”

E uns minutos adiante paramos. A partir daqui vamos a pé, até ao Viaduto Santa Teresa, “lugar histórico, quase da construção da cidade”. Agora é palco, ou antes, subpalco. Se domingo à tarde tem Funk dentro do Mercado, sexta à noite tem Duelo de MC’s debaixo do Viaduto.

É por isso que aqui estamos. Para vê-lo de dia: graffi ti, sem-abrigo arrastando cobertores, um homem a dormir em cima de um cartão no sítio onde sexta havia o palco.

Do outro lado da rua fica o frondoso Parque Municipal. Não estamos na periferia, mas bem no centro. Em Belo Horizonte, como noutras cidades brasileiras, as elites mudaram para bairros à volta e o centro foi ficando decadente.

“É a turma do crack”, diz Carlos, olhando os vagueantes. “Por dez reais [quatro euros] você compra uma pedra. De vez em quando a polícia vem e dá uma batida. Mesmo durante o dia aqui é perigoso.”

Sentada num banco, uma moça vende brigadeiros. “Minha avó fez.” Tem um top mínimo, estômago e barriga à mostra, piercing no umbigo, e está eléctrica. Viu o duelo de MC’s, anteontem? “Vi. Foi chique. Muita dança. Traz um pouco mais de alegria para a gente que está na rua. Tem muita gente que mora aqui.” Ela chama-se Samara, 20 anos e dois filhos. “Um nasceu quando eu tinha de 14 para 15 anos e o outro de 16 para 17.” Mora com eles e a mãe num bairro da periferia. Uma tatuagem no braço: “Amor só de mãe.” E outra: “Livra-me de todo o mal. Amén.”

Por cima, um prédio de janelas sujas, meio quebradas. E a rua à esquerda leva à Praça da Estação, centro do centro. O topo dos edifícios está cheio de graff ti negros e pontudos, como um alfabeto arcaico. “Isso é tudo em código, só eles entendem”, diz Carlos. Por toda a Belo Horizonte há letras destas, nos últimos andares de prédios altos. “Estão nos lugares mais impossíveis. Eles deitam no tecto, e ficam pintando de cabeça para baixo, com um segurando as pernas.”

Cá em baixo, a voz apocalíptica de um pastor toma a rua. É o culto de domingo no Santuário do Bom Jesus, uma das muitas igrejas evangélicas que brotam no Brasil. A sala do culto é aberta à rua, como uma garagem. Ficamos na entrada, atrás das cadeiras de plástico. “Aleluia! Aleluia! Aleluia!”, clama o pastor em progressão, fato-e-gravata e microfone, uma cruz na parede com luzinhas vermelhas. Há mulatas de palmas para cima, de olhos fechados. E um velho mulato ajoelhado. “Senhor, nós Te amamos”, diz o pastor. “Se Jesus é o pastor, nós somos o quê?” A plateia responde: “Ovelhas.” O pastor repete: “Ovelhas. Obedecemos. Obedecemos.”

Lá ao fundo avistam-se já as fontes da Praça da Estação. “Os do tráfico tinham tomado conta, mas o Governo do PT na cidade teve esse mérito, restaurou”, conta Carlos. “Agora tem menino brincando na água.” E tem mesmo, mulatos de tronco nu e calção, no meio dos repuxos. E o antigo edifício da estação virou um luminoso Museu de Artes e Ofícios. E há skaters e um monumento aos revoltosos mineiros do movimento Inconfidentes.

Daqui sai uma alameda de palmeiras baptizada com o nome do aviador Santos Dumond, também ele mineiro, e a Avenida Amazonas, a maior da cidade, que leva à Praça Sete de Setembro (dia da Independência do Brasil), a que toda a gente chama só Praça 7.

É aqui que muitas vezes marcam encontro o rapper Chacal e os seus amigos da “periferia”.

“As pessoas ficam com vergonha de falar favela, então falam periferia”, diz Carlos. “A gente vive rodeado por tráfico. No fim-de-semana, o mínimo que tem é 20 assassinatos.” Mas ainda não é tão violento como no Rio ou São Paulo. “A polícia de Minas é das mais temidas do Brasil, e o pessoal do tráfico tem um certo medo de estabelecer raízes aqui.”

A Praça 7 é uma rotunda sem nada de mais, mas tem história nas decisões de Minas. Por exemplo, o Café Nice, onde agora vamos beber um cafezinho de saco. Na esquina há um amontoado de gente em volta de um mulatão que faz um truque com fogo.

As ruas estão sujas. Alguns arranha-céus parecem abandonados. Esta é a cidade onde nasceu e cresceu Dilma Rousseff , a mulher que hoje vai tentar ser eleita Presidente do Brasil.

2. O Maletta Rewind.

Sábado à noite à porta do Maletta. O Maletta é um edifício mítico no centro de Belo Horizonte. Prédio descomunal, com apartamentos de baixa renda ocupados por estudantes, pequenos funcionários, prostitutas. Nos pisos de baixo tem velhas lojas, sobretudo “sebos”, como os brasileiros chamam aos alfarrabistas, e o átrio está cheio de barzinhos e cantinas, como a Cantina do Lucas. Pensem em tascas dos anos 60, escadas rolantes paradas, pessoal sem grana, gente da rua, da noite, da favela, com boémios de classe média à mistura.

Então, à porta, Chacal termina o seu cigarro ao lado de Zaika, garota de cabelo black power e um sorriso que é uma luz. Ambos mulatos de 22 anos, ela bem escura. Foi ela que entrançou o cabelo dele. Encontraram-se na Praça 7 e vieram para aqui.

Quando Chacal acaba de fumar, sentamo-nos e vem a primeira Brahma, garrafona de cerveja, três copinhos para repartir.

“Meu nome é Jonatan”, diz Chacal, todo ele fi no e anguloso, piercing no lábio e no nariz, trancinhas para trás. “Mas há uns dez anos a galera começou a me chamar de Lobo. Por causa do meu jeito, meio sarcástico. Aí, uma certa pessoa trocou o meu nome de Lobo para Chacal. O chacal é um animal observador, traiçoeiro, um cara que arma as coisas, articulado. E tem outro lado: é a representação de Anúbis, que é o deus egípcio da morte. Sempre gostei de mitologia, egípcia, grega. Eu era muito explosivo, agressivo, brigador, sempre gostava de confusão. Então comecei a utilizar isso para outras coisas, artes, desenhos.”

Tanto ele como Zaika estão com uma pequena bolsa num curso de arte.

“Eu moro no Alto de Veracruz, uma periferia”, diz Chacal. Uma favela? “É. Uma favela.” Três irmãos do lado do pai, três do lado da mãe. Pai rapper. Para quem é da favela, não é fácil fazer a escola no centro. Chacal conseguiu durante um tempo, porque a avó trabalhava lá, mas depois acabou na escola da periferia. “Era bem mais barra pesada. A galera lá é voltada para o crime.” O lugar chama-se Galeria da Boca de Fumo. “Tem maconha, cocaína, crack, é pessoal do tráfi co.”

E Zaika, top às bolinhas rosa e este sorrisão? “Eu nasci na serra, favela também. Tinha muitas festas da Rádio Favela, de hip hop, e meus pais sempre me levavam.” A mãe cantava MPB e samba e aos 10 anos Zaika também já cantava e compunha, mas rap. É por essa altura que muda para um bairro, muda de escola e acontece um episódio marcante.

“Eu fui discriminada na sala de aula. A professora de Matemática disse: ‘Ri, macaca.’ Porque eu estava rindo.” E Zaika foi à luta. “Minha família sempre me orientou muito nessas questões de racismo. O racismo aqui é muito camuflado, e depois as pessoas soltam-no pela palavra. Foi aí que eu liguei o botão de acordar: ‘Essas coisas não podem acontecer.’ Eu estava com onze anos.” Processou a professora, com a ajuda da mãe e organizou uma Semana da Consciência Negra. “Queria discutir, alertar as pessoas. Teve oficinas, palestras, DJ.”

Zaika cantou esta letra que agora anota no caderno da repórter:

“Na escola / me ensinam que todos temos os mesmo direitos. / Então porque minha professora tem preconceito? / Chega a zombar da minha raça / me dizendo: ‘Ri, macaca’, / tentando ferir a minha alma. / E ainda me pede calma! / Não, isso não pode ser assim, / eu me revolto, quero embate / para nisso dar um fim.”

Era uma menina de onze anos. “A galera começou a sacudir a grade, ficou todo o mundo meio emocionado…”

E como se conheceram, Zaika e Chacal?

“Ah, eu fui lá no Alto de Veracruz, ia ter um projecto com as mulheres do hip hop”, conta ela. “E ele estava lá. Era magriiiiinho! Hi! E quando abriu a boca todo o mundo se assustou. Porque ele falou com aquela voz grossa: ‘Meu nome é Chacal’.”

“Isso são águas passadas…”, atalha Chacal. Mas Zaika está lançada: “Nós tínhamos 16 anos, e ele andava tipo os caras da Máfia! Terno, cartola, charuto…”

E Zaika, como era, Chacal? “Era magriiiiiinha…”, ri ele. “Nesse tempo as meninas do rap se vestiam como os homens, calça larga, boné, blusão, tipo uns manos.” Zaika explica: “Porque era um movimento muito machista, então a mulher tentava entrar do jeito que dava. Até começarmos as discussões políticas.” E aqui está ela, bem feminina, alcinhas e mini-saia. “Agora tudo é muito flexível.”

E estão todos juntos lá nas noites de sexta, no Viaduto, no meio do que eles chamam “morador de rua”, ou seja, sem-abrigo.

“Tem punk rock, hardcore, reaggae, samba, funk…”, diz Chacal. “Teve uma época em que dentro dos MC’s só tinha pessoal do hip hop, mas começou a misturar.”

“Nós começámos o duelo de MC’s na Praça da Estação”, lembra Zaika. “Mas começava a chover e tínhamos de sair com todos os equipamentos. Então numa semana de muita chuva todo o mundo se foi comunicando e fomos para debaixo do Viaduto de Santa Teresa. Os MC’s pagam dois reais para participar e quem ganhar leva o bolo. Se enfrentam na rima de improviso.”

Carlos Herculano Lopes, o escritor-fazendeiro, chegou entretanto, e já vamos na terceira Brahma partilhada entre todos.

“Na verdade, isso do duelo de MC’s é uma adaptação do repente nordestino”, situa Carlos. Ou das desgarradas portuguesas? “É! Veio de Portugal e agora está aí no Viaduto.”

Para Zaika e Chacal, tudo isto é falar de política — da política que lhes interessa. “Essa ocupação da cidade, num espaço com que ninguém dialogava, leva a uma discussão: criar um ponto gratuito, na rua, na marra”, diz Zaika. “Além de entretenimento, é comunicação”, completa Chacal. “A essência do hip hop é a rua e o movimento do hip hop em Belo Horizonte fez isso: estar presente no local onde a gente vive, onde todo o mundo tem possibilidade de nos ouvir.”

Também já trabalharam vídeos em percursos de metro, criando haikais na hora, sendo que o metro em Belo Horizonte é para a periferia.

“O que a gente faz é política”, diz Zaika. “E o país tem uma dívida histórica muito grande com os negros. As pessoas que moram na favela são sobretudo negras e o acesso a educação e saúde é difícil.”

O Governo de Lula não aprovou quotas de discriminação positiva para negros. “E para despistar”, diz Chacal, “baptizaram um navio da Petrobrás com o nome de Zumbi.” Herói da luta contra a escravatura. “Para a galera não se sentir usurpada. Mas na prática, para mim, eles voltaram ao navio negreiro. Só tiraram os negros e colocaram o nome, transformando-nos em trouxas.”

“Discriminação aqui é todo o dia”, diz Zaika. “Por causa do cabelo, por exemplo. Tem gente que não entende que o nosso cabelo é crespo mesmo. E a gente anda com ele entrançado, com dread, com turbante, à black power… São coisas que nos representam. E é difícil de entender porque é que há gente que se sente mal com isso quando a gente se sente bem.” Ainda hoje, conta, quando passou em frente a um salão de beleza, as mulheres pararam a rir do cabelo dela.

E tanto Zaika como Chacal acham que o Governo Lula ter tido um ministro da Cultura negro como Gilberto Gil fez mais diferença — boa — na cultura do que na consciência racial.

A vida deles não melhorou muito.

“Eu como de favor, eu moro de favor, eu ando sem um tostão no bolso, nem para pagar a passagem”, resume Chacal. “Depois de todos os projectos que fi z, tive de voltar a trabalhar de servente de pedreiro, de assistente de telemarketing. Então, não sinto essa diferença. Só de reconhecimento.”

E Zaika? “Lula teve projectos interessantes, de auxílio. Mas não se aproximam da minha realidade. A gente vive de favor. Fiz um vídeo sobre isso: como fazer para trabalhar aquilo que nós queremos? Eu estive um ano e meio como atendente de telemarketing e surtei.” Pirou. Que faz agora, além de estar a terminar o curso de vídeo? “Dou oficinas, cuido de criança, faço artesanato, trabalho informal. E moro com amigos numa casa que eles construíram na marra.” Com dificuldade.

Na eleição de hoje, há essa coisa inédita de ter duas mulheres, Zaika vai votar numa delas, mas não em Dilma. “Identifico-me mais com a Marina [Silva]. Ela é mais realista, apesar de pensar que ela não vai ganhar.” E Chacal também vai votar em Marina.

3. O Mercado

De volta ao passeio de domingo, diz Carlos: “Esse morro onde cresceu o Chacal é perigosíssimo.” Belo Horizonte não é como o Rio, onde os morros estão no meio da cidade. Morro aqui é em volta.


Estamos a chegar ao Mercado Central, bem na hora do almoço.

É um programão de domingo, passear e comer no Mercado Central, instituição da cidade. Tem cestos e peneiras do interior. Tem chifre para chamar o gado (o “berrante”), chicote de três-braços, cascos de enfeitar. Tem queijo do Serro e queijo Canastra, os melhores de Minas, que é onde há o melhor queijo do Brasil. Tem goiabada, doce de rapadura, de leite e de coco, baga de jabuticaba para chupar, maracujá para comer à colher, urucu para colorir a comida, também conhecido em Portugal como colorau. E amuletos. E plantas da sorte, como a espada-de-S. Jorge, que se põe “na entrada da casa para evitar o mau-olhado”, explica Carlos.

E cá está Christiane Tassis, 41 anos, a escritora com quem marcámos encontro numa banquinha de torresmo. Os leitores portugueses podem procurá-la no romance Sobre a Neblina, publicado pela Quetzal. Aqui acaba de lançar outro romance, O Melhor do Inferno, e é uma mineira género valquíria alemã, alta, loura e linda, que parece pairar na multidão.

A zona das tasquinhas está a abarrotar. Tudo na cervejinha, na comida. Sentamo-nos num canto, três para duas cadeiras.

Christiane nasceu no interior de Minas — Governador Valadares — e viveu em Belo Horizonte, Salvador, Roma, São Paulo, Rio de Janeiro. Em 2004 voltou a Bê-Agá. Vista assim, depois de correr o mundo, como acha a cidade?

“No Rio tem mais mistura. Tem a coisa da praia, dos espaços públicos. Aqui, este mercado é o espaço mais comunitário da cidade. Eu nasci perto de uma favela, em Valadares, e tinha muitos amigos negros. Quando cheguei a Belo Horizonte, na faculdade, não via negros. Não tem negro no mercado de trabalho, praticamente.” Não é que no Rio não haja racismo. “Lá é mais hipócrita, também. Parece que está agregado e não está, mas há mais negros. Aqui escuto piada de negro e de gay. É uma cidade feita de muitas famílias do interior, um lugar de grupos. As pessoas são gentis, acolhedoras, mas existe um estranhamento com o que não é parte do sistema.”

Tanto Carlos como Christiane votaram em Lula.

Este domingo, Carlos vai votar em Serra, por causa da política externa de Lula: não lhe perdoa a cordialidade com Hugo Chávez, da Venezuela, com Ahmadinejad, do Irão, com Cuba.

E Christiane vai votar em Marina. Só se na segunda volta Dilma enfrentar Serra é que Christiane vota nela. E se o candidato fosse Lula, agora? “Eu votaria nele, mas não achando que era o máximo. Na primeira eleição dele, eu estava em Cuba, saiu um ônibus de brasileiros para votar em Havana, e a gente ia chorando de emoção.”

“Hoje o pior do Lula são os aliados dele”, diz Carlos. “Vai resolver o problema do Irão? É uma ingenuidade muito grande. Ou uma grande pretensão.”

“Mas social e culturalmente Lula foi muito bom”, ressalva Christiane. “O Gilberto Gil foi um óptimo ministro”, concorda Carlos. “É, com a criação dos pontos de cultura nas comunidades carentes”, acrescenta Christiane. “E as leis de incentivo fi scal. A Petrobrás é a maior apoiadora de cultura, mas não é a única. E antes você não conseguia patrocínio para nada.”

Depois do almoço, as lojas do mercado vão fechar.

E à tarde vem o pessoal do Funk.

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