O teólogo católico que quis as suas cinzas nas águas sagradas do Ganges

Foto
Raimon Panikkar, ícone do diálogo inter-religioso

Um dia contou que em 1954 deixou a Europa como cristão, descobriu na Índia que era hindu e regressou como budista - sem, contudo, "nunca deixar de ser cristão". Raimon Panikkar era um ícone da unidade por que tanto pugnava nas suas obras

Raimon Panikkar, nome cimeiro do diálogo inter-religioso, morreu aos 91 anos na Catalunha. Pedira para ser cremado e que as suas cinzas fossem divididas entre o rio Ganges, na Índia, e Tavertet, a aldeia catalã onde morreu a 26 de Agosto. Era o mais importante nome da actual teologia do pluralismo religioso.

No obituário que escreveu no National Catholic Reporter, dos Estados Unidos, Joseph Prabhu, professor de Filosofia e Religião Comparada na Universidade da Califórnia, diz que Panikkar foi um dos pioneiros dos novos tempos da globalização e do aumento da comunicação entre diferentes culturas. "Deixou-nos um legado rico e diversificado, desde o litúrgico ao pastoral, teológico e sapiencial." Foi "um dos grandes académicos do século XX, nas áreas da religião comparada, teologia e diálogo inter-religioso".

Nascido em 3 de Novembro de 1918, Raimon foi educado no catolicismo tradicional, numa escola dos jesuítas em Barcelona. Estudou depois Filosofia, Ciências Naturais e Teologia em Barcelona, Madrid e Bona. Em 1939, com o início da II Guerra Mundial, regressou a Espanha, doutorando-se em Filosofia em 1946 (em 1958, obteria ainda doutoramento em Ciências e, em 1961, em Teologia).

Coincidindo com o final da primeira prova, Panikkar foi ordenado padre. Conhecera entretanto Escrivá de Balaguer, o fundador da Opus Dei, instituição a que continuaria ligado até ao início dos anos 60. Pannikar nunca falou muito sobre a sua ligação à Obra. Mas Joseph Prabhu escreveu que, quem compare o pensador dessa época com o mais recente, percebe que ele mudou bastante.

Um dos factores dessa mudança foi a viagem que Panikkar fez à Índia, terra natal do pai, em 1954. Tinha então 36 anos. Mais tarde, diria sobre a experiência: "Deixei a Europa como cristão, descobri que era um hindu e regressei como budista sem nunca ter deixado de ser cristão."

A experiência foi decisiva pela amizade que Panikkar travou com três monges: Jules Monchanin (1895-1957), Henri Le Saux, conhecido como Swami Abhisshiktãnanda (1910-1973) e Bede Griffiths (1906-1993), beneditino inglês. Num dos livros de Panikkar traduzidos em português (A Trindade, ed. Notícias/Casa das Letras), ele evoca precisamente o que aprendeu de Abhisshiktãnanda.

A partir daí, Panikkar passou a utilizar expressões e conceitos do hinduísmo e do budismo para expressar aspectos centrais da fé cristã. A sua tese de doutoramento em Teologia, O Cristo Desconhecido do Hinduísmo, defendida em 1961, compara a filosofia de São Tomás de Aquino com a interpretação que um sábio hindu, Sankara, faz das escrituras sagradas do hinduísmo. Na tese, defende que Cristo não é um exclusivo do cristianismo, mas antes um símbolo da unidade entre o divino e o humano, ou o rosto humano de Deus.

Aprender do hinduísmo

Em 2004, dizia a propósito, em entrevista ao PÚBLICO no final do Parlamento das Religiões do Mundo, em Barcelona, que os crentes não precisam de aprender uns com os outros, mas enriquecer-se mutuamente. "Não posso só enriquecer-me com os outros, mas partilhar também o que sou. Pode aprender-se a contemplação, a paciência. Mas, do hinduísmo, os cristãos podem aprender a tolerância, a superar a razão, a não reduzir as coisas apenas a uma dimensão."

Acrescentava que não é preciso fazer sínteses entre as religiões. "Nem é tão-pouco um ecletismo, mas um enriquecimento, que será consequência de um maior conhecimento, do amor e do encontro com a diferença. Os católicos têm necessidade do budismo para recordar a dimensão da contemplação e do silêncio. O encontro serve para enriquecer e contactar com o que cada um esqueceu da sua tradição."

Personalidade multidimensional, místico e poeta, Panikkar fez celebrações da Páscoa em que começava por subir com os participantes a uma montanha, fazendo meditação antes de amanhecer. Prabhu conta que ele saudava depois o sol, abençoava os elementos - ar, terra, água e fogo - e todas as formas de vida, antes de celebrar a missa que festejava a ressurreição de Cristo.

Uma celebração "cosmoteândrica", diz o professor da Califórnia, "com as dimensões humana, cósmica e divina da vida reverenciadas e numa profunda harmonia".

O seu carácter de ícone inter-religioso traduzia-se também no empenhamento em iniciativas concretas. Co-presidente do Parlamento das Religiões do Mundo, Panikkar dizia que o processo de diálogo inter-religioso iniciado nas últimas décadas é "imparável e vai na direcção certa". Mesmo se "por razões políticas" ele é, por vezes, travado.

A fé não tem porquê

Um dos seus últimos trabalhos juntou-o a José Saramago, em 2009, a convite do maestro e compositor catalão Jordi Savall, na gravação do DVD com a obra de Joseph Haydn As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz. "A fé não tem porquê, a fé é espontânea, é conhecimento e a consciência da nossa divindade última e suprema", dizia, num dos seus comentários à obra.

Vestindo-se normalmente à maneira indiana, Pannikar juntava em si o olhar do sábio, a profundidade do contemplativo, o calor de um amigo e a argúcia do académico que manteve debates com outros grandes teólogos como Jean Danielou, Yves Congar ou Urs von Balthasar, escrevia Prabhu.

As suas mais de 40 obras (além de um milhar de artigos, e textos disponíveis no site oficial www.raimonpanikkar.org) estão para ser integralmente publicadas em Itália e Inglaterra. Entre elas, contam-se Diálogo Inter-Religioso, A Experiência Cosmoteândrica, A Harmonia Invisível.

Na entrevista ao PÚBLICO, dizia: "Não podemos passar por cima das injustiças institucionais e de tantos problemas concretos, mesmo se as religiões não são para solucionar todas as coisas." E no DVD de Savall acrescentava a urgência: "Hoje, não amanhã, o paraíso não é para amanhã. A vida é o eterno presente de cada um de nós."

Sugerir correcção