A cultura como sistema

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ADRIANO MIRANDA

Incapaz de agir, o actor político discursa. E, ao fazê-lo de forma aleatória, produz uma reacção imediata de repúdio

É frequente afirmar-se que o consulado Nery/Carrilho à frente do Ministério da Cultura correspondeu a um momento de especial afirmação do tecido cultural português e de um consequente desenvolvimento do Ministério da Cultura. Acontece que Rui Vieira Nery e Manuel Maria Carrilho manifestaram uma invulgar capacidade para ler a realidade cultural do país e, ao mesmo tempo, desenhar uma estratégia para o seu apoio, desenvolvimento e promoção, quer no território nacional, quer no estrangeiro, através da administração central do Estado, isto é, de um novo Ministério da Cultura adequado a uma realidade dinâmica mas concreta. Destaco, em particular, a estabilização das orquestras e dos teatros nacionais, a autonomização da arqueologia e da conservação e restauro, o lançamento da rede de museus e ainda a criação do Centro Português de Fotografia, no Porto.

Com o novíssimo IPAE - Instituto Português das Artes e Espectáculos, desenhou-se uma estratégia para o território nacional e pensou-se a prática cultural como um sistema, próximo do cidadão e de responsabilidades partilhadas com o poder autárquico, sem fazer tábua rasa de um passado próximo forte e em crescimento. Viseu, com o Centro Regional de Artes e Espectáculos, foi um muito bom exemplo das possibilidades e da absoluta necessidade de se lançarem pelo país estes equipamentos e uma rede estratégica de desenvolvimento cultural. Em 1995, com José Ribeiro da Fonte e Mário Barradas, entre outros, Rui Vieira Nery desempoeirou o país cultural e mostrou que o Estado e a administração central podiam fazer a diferença e lançar desafios.

Cerca de 15 anos depois, é tempo de se fazer um balanço do sistema: serve este Ministério da Cultura a realidade da cultura em Portugal? É um factor de desenvolvimento do país ou transformou-se a máquina do Estado num gigante triturador e burocrata? Que sentido faz hoje, em 2010, um Estado legislador, regulador, financiador e produtor artístico? Como pode este ministério enfrentar as dinâmicas contemporâneas da criação artística mas também os estimulantes desafios do património material e imaterial? Que capacidade tem a administração central do Estado para apoiar a cultura e a língua portuguesas fora das fronteiras territoriais? O que se exige hoje de um ministério para a cultura?

Ora, no actual contexto de crise financeira e de severas restrições orçamentais, e na ausência evidente de uma estratégia consistente e mobilizadora do tecido cultural português por parte do Ministério da Cultura, sobressai um discurso público amargo e angustiado vindo dos criadores e das instituições, e um conjunto de intervenções crispadas e tecnocráticas por parte da tutela que, ao invés de acalmar o sector, revela uma distância alarmante e anacrónica em relação aos intervenientes e, de resto, muito pouco esclarecedora para o cidadão.

Não importa aqui perceber se estamos perante "um bom ministro" ou não. Ou se, como afirma a actual ministra, "Não entro nas coisas por tentação, mas por análise racional, lógica, e por entusiasmo, por paixão." A questão não é a da intensidade pessoal, mas a de coerência estratégica de um ministério que tem que ter uma linha de intervenção clara, percebida e adoptada pelas comunidades culturais e eficaz para o cidadão.

Mas acontece que assistimos a uma sistemática grandiloquência política dos sucessivos ministros "Fazer mais com menos" (Pinto Ribeiro) ou "Os períodos de crise têm esta vantagem: estimular a nossa criatividade e lançar bases para o futuro" (Canavilhas) ou ainda "Perceber, por exemplo, de que forma podemos preparar o terreno para, quando a crise for ultrapassada, termos um esqueleto cultural (sic) com capacidade de ser mais perene e fundamentado" (Canavilhas), numa retórica vazia de sentido e que mais não pretende, em desespero, do que ocupar o espaço público. E esta é a verdadeira agonia da acção pública governamental: incapaz de agir, o actor político discursa. E, ao fazê-lo de forma aleatória, desamparado de uma estratégia consequente, sem referenciais de sentido mobilizadores, produz com o seu discurso uma reacção imediata de repúdio pela transparência do vazio que transporta.

Estamos hoje bem longe de 1995, do espírito reformista e inovador da equipa do primeiro Governo Guterres. Há no ar um sabor a fim de festa misturado com um certo deslumbramento.

É sabido que a hermenêutica e a dialéctica trouxeram também consigo a ignorância e a arrogância. Incapaz de dominar as primeiras, o actor político refugia-se nas segundas. Seria mau para o Governo, se a oposição não andasse a fazer o mesmo. Mas para os cidadãos e para o país é péssimo e inaceitável. Ou pensam que o futuro espera por nós? Doutorando em Ciências Políticas, FCSH/ Universidade Nova de Lisboa; membro fundador do Observatório Político, FCSH/ UNL

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