Itália diz adeus a Cossiga, o presidente que fez de louco para demolir o regime

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Cossiga em 1998: "Um gato selvagem que é melhor não arranhar" PAUL HANNA/REUTERS

Os italianos perguntaram-se muitas vezes se o seu PR não teria ensandecido. De facto, foi o profeta "desesperado" que anunciou o fim do antigo sistema político

Foi o Presidente da República que disse de si mesmo: "Eu não sou louco, faço de louco. Sou o louco fingido que diz as coisas como elas são." Francesco Cossiga, 82 anos, morreu ontem num hospital de Roma devido a problemas cárdio-respiratórios. Fica na História como o "Picconatore" (picareta) que ajudou a demolir a primeira República italiana e o seu próprio partido, a Democracia-Cristã (DC), no início dos anos 90, "bombardeando" todas as instituições.

Nasceu em Sassari, Sardenha, em 1928. Era primo do futuro líder comunista Enrico Berlinguer. Estudou Direito, entrou na política aos 17 anos nas fileiras da DC, aos 28 conquistou a liderança regional do partido e aos 30 foi deputado. Como político, foi o homem dos recordes: o mais jovem secretário de Estado da Defesa, o mais jovem ministro do Interior, o mais jovem primeiro-ministro e o mais jovem Presidente de Itália.

A eleição presidencial, em 1985, encerra também um recorde: foi eleito à primeira volta, por uma maioria sem precedentes: 752 votos em 977. Era apoiado pela DC, comunistas, socialistas, radicais, liberais e independentes de esquerda.

Durante muito tempo olhado como político cinzento, Cossiga era então um homem já marcado. Admirador de polícias e serviços secretos, coube-lhe dirigir a repressão durante os "anos de chumbo" dos terrorismos de extrema-esquerda e extrema-direita. Os estudantes acusavam-no do assassínio de uma militante e escreviam nas paredes o seu nome com K e os ss em gótico, aludindo aos nazis: "Kossiga".

A tragédia Moro

Segue-se a tragédia. Em 1978, era ministro do Interior de um governo de Giulio Andreotti quando Aldo Moro, líder da DC, foi raptado pelas Brigadas Vermelhas (BR). Com Andreotti e o comunista Berlinguer, recusou terminantemente negociar com as BR. Mas o seu nebuloso "plano de emergência" falhou e, 55 dias depois do rapto, Moro é encontrado morto em Roma, crivado de balas, dentro de um Renault. "Se tenho cabelos brancos e manchas na pele é por isso. Porque enquanto deixávamos assassinar Moro, eu dava-me conta disso."

Cossiga demite-se mas será nomeado primeiro-ministro, por oito meses, em 1979.

Eugenio Scalfari, fundador do diário La Repubblica e que acompanhou Cossiga na época, propõe uma interpretação psicológica que remonta à morte de Moro. "A pessoa Cossiga, a sua mente, os seus feixes neuronais, a sua alma ou o que se lhe queira chamar foram como que incendiados, fulminados por uma corrente de excepcional intensidade."

Disse-se nos anos 90 que Cossiga era depressivo ou bipolar. Para Scalfari, era "um espírito desesperado que se agita num labirinto sem encontrar a saída".

"Picconatore"

Se é esta a chave da transfiguração, Cossiga demorou a revelar-se. Nos primeiros cinco anos do mandato, foi um "presidente notário", meramente protocolar.

O "Picconatore" nasce em 1990. Subitamente, começa a atacar o Conselho da Magistratura, o Tribunal Constitucional, o sistema dos partidos, não poupando a DC. Multiplica as entrevistas e provocações. Avisa os que o atacam: "Sou um gato selvagem que é melhor não arranhar." Proclama em 1991: "Dei ao sistema tantas picaretadas que já não pode ser restaurado, tem ser mudado."

Quando Andreotti revela em 1992 a existência do Gládio, uma organização clandestina armada criada no pós-guerra para combater o comunismo, Cossiga defende-o em nome do anticomunismo. O Partido Democrático de Esquerda (PDS, pós-comunista) pede o seu impeachment. O PR ri-se e trata o seu líder, Aquille Occhetto, por "zombie com bigodes".

Demite-se inesperadamente em Abril de 2002, meses antes do fim do mandato, com uma comunicação de 45 minutos na TV. Dois anos depois, com o escândalo "Tangentopoli" e a operação judicial "Mãos Limpas", o sistema desmorona-se. Tinha sido profeta.

Cossiga, senador vitalício, faz doravante um percurso errático, ora apoiando o pós-comunista D"Alema, ora Berlusconi, ora Prodi.

Deixou quatro cartas lacradas: ao presidente napolitano, aos presidentes do Senado e da Câmara e a Berlusconi: "Que Deus proteja a Itália."

Ontem, os jornais italianos online titulavam: "Adeus Picconatore".

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